quinta-feira, 31 de março de 2011

Finalmente

Desligo a música dos James e emcerro o computador. Aliado a estes gestos simples, um sorriso com lágrimas despenteia-me o pensamento, "Terminei o romance".

quarta-feira, 30 de março de 2011

Trabalho

Eram três da manhã quando coloquei a metralhadora no conforto dos lençóis. Perto das nove, o gatilho chama-me para a guerra. Tenho ainda muito que desbravar.

terça-feira, 29 de março de 2011

Romance 1


Já com o sol sobre a nuca da cidade, acordo com a cara enterrada no pântano viscoso, que brota da minha boca entreaberta. Junto a ele, o meu companheiro suga-o descontraidamente, com a cauda a varrer a satisfação. Abano a cabeça, reprovando a atitude do malandro, e sopro-lhe uma indignação para o focinho. De olhitos a piscarem uma aflição, a bola de pêlo abana a cabeça com veemência, mas quando o vento lhe provoca incómodos, ele pula para o sobrado, “Este menino tem cada uma!”, atiro-lhe o enfado, ao mesmo tempo que estico anarquicamente o esqueleto preguiçoso, sob o olhar desdenhoso e mesquinho do meu companheiro, que rebola a ironia perto do rectângulo escuro. Pouco depois, este desequilíbrio desgrenhado cessa, com a mão direita a mergulhar nos líquidos pegajosos. Suspiro desconsolos, rugindo palavras incultas, enquanto um pequeno sorriso me faz umas caretas muito deselegantes, “Olha o tratante!”, e cuspo-lhe a almofada.

Parabéns


Eduardo Souto de Moura foi distinguido com o prémio Pritzker 2011, o maior galardão mundial na área da arquitectura, considerado o Prémio Nobel da área. Esta é a segunda vez que um arquitecto português vence este galardão.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Romance


Perto dos objectos minúsculos, o crepúsculo finda num adeus rápido, enquanto a noite nasce num breve respiro. A este gesto de camaleão, assisto com grandes sorrisos da varanda do meu apartamento, a três pisos de altura do pavimento asfáltico. E penso, com uma voz agarrada ao silêncio, que não há nada mais belo do que sentir ...a palpitação desta magia. Todavia, como o tempo não tem tempo, tudo acaba rapidamente sobre o negrume da minha tristeza, surgindo na manta da noite muitos pontinhos brancos, que apenas nos sonhos molhados os consigo ladear. A par, candeeiros presos nas fachadas dos prédios acendem os caminhos dos transeuntes, que me fazem lembrar os passeios da solidão. E por vê-la assim em liberdade, um agasalho nostálgico acaricia-me a memória. Como consequência, brota das minhas reentrâncias umas lágrimas saudosistas, como se fossem rios a caírem do sopé da montanha, enchendo de reminiscências o meu colo surpreendido. Porém, quando sinto o frio do desânimo a percorrer-me a coluna, relincho e abano as crinas húmidas até as secar, da mesma forma que o exorcista faz ao seu paciente. E assim que a saudade me desaparece da visão, vejo que a rua está sem movimento e vejo que a varanda está sem palavras.

domingo, 27 de março de 2011

Aviso

O romance que escrevo, já começa a cheirar a luz do fim.

Ideia simples

A noite com silêncio é apenas uma fórmula do pensamento.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Deixa-me beijar-te

Tenho sede. Preciso de palavras. Mas não podem ser vocábulos quaisquer, porque o meu sentimento está demasiado ferido, demasiado ensanguentado. Tenho sede. Preciso do conforto das palavras, preciso dos beijos das frases. Tenho sede. Aproxima-te, deixa-me beijar-te.

Sugestão


«O silêncio e a calma do deserto só eram interrompidos pelo chispar do seu isqueiro. Acendia-o e colocava-o em frente dos olhos esperando que o vento o apagasse. Quando o vento o apagava, voltava a acendê-lo e a chama elevava-se por um instante, vibrando na sua alaranjada transparência, até que a brisa o fazia desaparecer outra vez. “Talvez devesse comprar um cachimbo” – pensou Maurício, ‘“dizem que é uma boa maneira de deixar de fumar”. Isto era o que Maurício pensava. Entretanto, todo o deserto parecia estar à espera que o seu isqueiro ficasse sem gás.»

quinta-feira, 24 de março de 2011

Fila de trânsito


Tenho os dedos a fervilhar maluquices. Talvez necessitem de respirar um pouco de sentimentos imaculados, que na língua negra da rua possam encontrar. Mas antes que uma nova especulação me percorra o pensamento, iço a massa inerte e atiro-a à vontade, “Saia da frente, velhinho”, po, po, po, po, “Ó mulher, mexa o coiro”, “Vai conversar com o carago, pá. Pensas que sou da tua laia?”, “Grande vaca, és cá uma assanhada!”, po, po, po, po, “Carregue no acelerador, velhinho”, arreganho os dentes e desato às gargalhadas.

quarta-feira, 23 de março de 2011

A porta do desgosto


"O telefone nunca estremece. Não sei o que se passa", "Ó meu, tem calma. O que importa é teres saúde e amigos", "Pois, é verdade", "Já te basta as chatices da crise, companheiro", o Zé desliza o olhar para a cerâmica, enquanto engole o café fumegante, "A frontalidade deveria ser obrigatório nos lábios", "Gosto da tua boca", digo-lhe, acariciando-lhe a tristeza. Sorrimos vagamente, mas ele sacode-a no momento seguinte, "Bem, vou-me embora. Preciso conversar com a almofada. Tenho muita coisa para matutar", "Segue o teu instinto, meu. Estarei aqui para o que for preciso", atira-me um sorriso ténue, ao mesmo tempo que iça o desgosto, "Precisas de largar a má onda", "Cheguei aos meus limites", "Eu sei, Zé, eu sei", "Bem, vou-me embora. Fica bem", "Tu também", vira o negrume e caminha até à porta. Abre-a e sai, "Tenho que o ajudar. Ele não pode continuar assim", engulo o café e corro.

terça-feira, 22 de março de 2011

Pastelaria


Todos os domingos, exceptuando os de chuva, coloquei os ouvidos a sugar o burburinho da pastelaria, “Já viste a porca! Mama tudo!”, “Coitado do Zé, não merecia uma companheira assim”, e encarquilhei um vasto pensamento, “Aquele gajo é um goleador. Todos os jogos molha o bico. Não há igual”, “É pena estar no teu clube”, e sorriram como dementes, como se estivessem refastelados num sofá do hospício. Porém, no domingo passado, decidi não voltar a colocar o corpo nas trivialidades, “Sinto-me arrepiado, pois não sinto o cheiro da eloquência intelectual”.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Primavera


Junto à magotes de livros, que me sorriem com vivacidade, vejo a passarinhada a saltitar nos ramos moribundos das árvores sem alegria. Aguço a curiosidade, como se esticasse a lupa, e indago a natureza. E quando lhe acaricio o dorso, vejo a Primavera a renascer da mortandade, "Por isso o gáudio, meninos", murmuro com suavidade, esticando o prazer do rosto.

sábado, 19 de março de 2011

Pai

O perfume da alvorada desliza para o meu quarto, amedrontando as sombras sem sentimentos. Limpo o rosto estremunhado e coloco um sorriso vasto nos lábios. Depois pulo para o sobrado e encosto os dentes na parede de vidro, “Que lindo dia! O meu pai vai ficar todo contente”, e olho para o presente.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Sugestão


O último desejo de Liborio Uribe ao tomar conhecimento que a hora da morte está traçada, pede à nora que o leve a contemplá-lo. Homem do mar, passou toda a vida no Dois Amigos, onde muitas histórias se passaram. O neto Kirmen sempre desejou recordar essas histórias, de que tinha memórias esfiapadas, e decidiu reconstituir a vida a bordo do barco.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sentimentos


Sinto que as minhas mãos não arrefecem os nervos do decrépito, que chora e esbraceja a morte da companheira, "Tenha calma, homem. Agarra-se à vida", "Mas ela morreu", "Deus vai tratar dela com carinho", e chora como um desalmado, "Ela morreu, mas está viva", encarquilho os vincos da testa e sacudo a incompreensão, "Tenha calma, tenha calma", "Ela não gosta de mim; ela não me liga...", "Ah, então é isso!", e sorrio, "Tenha calma, homem. As dores de amor são duras, mas há pessoas que não as merecem", assoa o nariz ao lenço amarelado, "Acha?", "Se não lhe liga, acho. Quem gosta, procura", "Tem razão", iça a tristeza e indaga a felicidade.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Início da polémica


Junto à porta da tasca do Zé, o Manel esbraceja razões, "O jagunço vai sair da junta, tenho a certeza", "Ó Manel, eu conheço-o. E ele disse-me que não sairá", "Olha, mas disseram-me que ele vai sair. E é uma fonte segura", "Mais segura do que o próprio?", e o bom Diogo desata a sorrir, agarrando na malga de vinha, "Mas disseram-me, pá", "Tá bem, tá bem", e engole o líquido precioso, "Tas a gozar comigo?", atira-lhe o Manel, colocando os punhos no nariz do Diogo, "Ganhem juízo, camaradas", vocifera subitamente o Zé.

terça-feira, 15 de março de 2011

Poder


A aragem empurra a porta envelhecida contra a parede sem cimento, ao mesmo tempo que a noite me lança os braços peganhentos. E quando eles me acariciam o pijama, salto para o desconhecido, como se voasse para outra margem, "Aproxima-te", e caio numa praça em terra batida. Iço o desconsolo e limpo o fraque, "A tua cidade está cheia de fogo!", indago o espaço, mas nada encontro, "Não percebo", "As pessoas não são simples, porque todos querem a cadeira do poder", "Sim, é verdade", "Cala-te, sua cobra sem cérebro", mastigo uma aflição, "Diz à tua cidade que a amizade e o amor são o vento da felicidade. Caso não o faças, levarei a tempestade à podridão", "Fique descansado, senhor", e desapareço.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Futuro


Caminho por entre o paraíso e respiro a saudade do futuro. Mas há sempre um passado que esburaca o meu sorriso; mas há sempre uma réstia de trevas que navega nos meus braços, "Hei, tu aí!", grita-me uma voz, que mais parece uma tempestade, "Pontapeia a noite para o deserto sem água e deixa-a morrer como na matança do porco", iço a tristeza e olho para a linha do mistério, "O horizonte é o meu futuro. E no futuro não cabe o passado", "Nem mais", suspiro uma satisfação imaculada e peço à nuvem que me leve até às margens do desconhecido.

domingo, 13 de março de 2011

Praça dos mortos


Embrulhado em nervos, deambulo na praça dos mortos. Está frio, mas ele não me corta os lábios, pois a minha consciência azeda-os com razões. Pouco depois, estaciono o desassossego num banco centenário e cravo o olhar nas rosas, “Volta para a tua terra”, diz-me um moribundo sem braços, “Mas lá não sinto felicidade”, “Não há nada mais bonito do que respirar. Fala a voz da experiência”, encarquilho o rosto e bebo a verdade. Quase no mesmo instante, abro as persianas e vejo o meu quarto com problemas, “Tudo se resolve”, e sorrio, saltando da cama.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Verdade


No outro mundo sentiu-se infelizmente um forte abalo. Por cá, sentimos também o estremecimento: é o que nos dizem os bolsos. Porém, analogias à parte, as réplicas estarão na "Parva que Sou" durante décadas.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sugestão


Com a Cidade e as Serras Eça defende mesmo um regresso ao campo? Em que termos ou com que meios? Aliás, a oposição da cidade às serras resiste a uma leitura do romance? E onde situar a tão famosa ironia? Como foi lido e como tem sido ensinado o último romance do Eça?

quarta-feira, 9 de março de 2011

Grito


Coloco as pernas no passeio e movo-as até à praça da tristeza, onde os guardiões do azedume não falam. Mas antes de empurrar a fronteira, que pesa toneladas, uma felicidade estaciona o contentamento à minha frente, "Sacode o coração", "Não tenho forças, cara amiga", suspira uma pequena ironia, "Só não temos forças para o que não queremos", "É verdade", "Então...?", sorrio com dificuldade, "Vamos, anima-te. A porta do paraíso fica ao virar da esquina", mas alargo-a com exagero, "E quando a penetrares, grita ao mundo que ninguém deve viver aqui", "Assim farei", viro as ancas e desço as escadas.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O anjo


Tenho o meu desassossego a passear na marginal, que namora constantemente com as ondas do mar. Pouco depois, um pequeno promontório exige-me que suba até à ponta do seu nariz, onde o vento dança uma valsa trágica, “Que paisagem!”, murmuro, quando as cabeças dos prédios piscam-me com suavidade, “Não há nada mais bonito!”, acrescento, “Não há nada mais falso”, sopra-me uma voz. Encarquilho a aflição e indago a pequena praça, “Porque as imagens não mostram o lado negro”, e descubro um caquéctico a mamar um cigarro, “Nunca devemos navegar nas primeiras impressões. Deixa o tempo mostrar-te as imperfeições”, e desaparece.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Sugestão


Elisa e Alexandre conhecem-se num fim de semana no Caramulo. São ambos jovens, pertencem a círculos diferentes, veem o mundo de perspetivas quase sempre opostas - e, no entanto, parecem incapazes de escapar à atração que lentamente os envolve. Com avanços e recuos, iniciam então uma relação que não entendem e que questionam. Mas que os marcará para sempre.

Elisa tem medo da lua e de janelas sem cortinas. Pensa de mais e quer entender o mundo nas suas múltiplas facetas. Alexandre, pelo contrário, avança sem grandes reflexões, preocupado em aproveitar cada momento do presente antes que as responsabilidades o amarrem.

Romance de iniciação à idade adulta, O Passado Que Seremos dá-nos o(s) retrato(s) de uma geração e dos caminhos onde procura encontrar a "sua" verdade.

terça-feira, 1 de março de 2011

Peditório


Coloco os gemidos da garganta na banheira, enquanto repouso o cansaço sobre as peças sanitárias. Quase no mesmo instante, um vendaval de berros sacode a noite. Encarquilho a admiração e atiro-me para a janela, “Cala-te, rufia”, diz uma mulher para um miúdo demente, “Quero o carrinho, quero o carrinho”, “Já tens o quarto cheio de carrinhos”, “Quero o carrinho, quero o carrinho”, e o silêncio é apenas uma memória muito velha, “Cala-te”, insiste a incauta, “Caluda, quero descansar”, aparece subitamente uma voz, “Dá-lhe a merda do carro”, “Tem razão. É o que vou fazer”, “Amanhã será um carrão”, murmuro com suavidade, fechando a janela.