segunda-feira, 23 de março de 2015

RUA

A rua está cheia de intervalos, que obrigam os condutores a fugirem da oficina. Em cada uma das margens existem fachadas com buracos. Num deles está um vaso, um vaso com uma pequena floresta. Atrás dela aparece um monstro com barba na cara, que resmunga coisas quando o sol lhe sussurra aos olhos. Depois desaparece, desaparece para beber os líquidos da vida. 

quarta-feira, 18 de março de 2015

Olhos moles



- pantufas escuras espalhadas pelo céu
olhos moles metidos no cartão

- chove
o vento é uma mão que esbofeteia o mundo
um pedaço de ferro que incendeia os sonhos

- a pobreza levanta-se
ergue a fome
depois estica as dívidas
massaja os músculos

- por fim encosta-se
boceja
olha para o silêncio
a luz dos candeeiros ilumina-lhe a solidão

- o cansaço chega em cataratas
em rios rápidos
e as dores mordem-lhe os ossos

- vira-se
ajoelha-se e arrasta-se até à montra

segunda-feira, 16 de março de 2015

JANELA

Na janela do segundo andar está uma carcaça a espreitar os movimentos da bola, que são produzidos por olhos pequenos e por penas musculadas. Quando a bola dança com as redes, o bulício de quem chutou modifica a boca da carcaça. Por isso dá outra vida às paredes do ninho, que são mais velhas do que a alma do meu avô. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

As palavras que nunca te direi

As palavras que nunca te direi estão guardadas na memória. A chave para as libertar está na tua língua. Para isso terás que lhe pedir para produzir outras ideias, outros mundos, onde a soma das premissas é um livro novo, uma atmosfera mais amiga do amigo, mais próxima da justiça. As palavras que nunca te direi estão presas, mas podem ver a luz do dia se apagares luz da noite. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Roupa de Inverno

     Estive na Fnac. Namorei com os livros; almocei uma página quando o meu olhar ficou preso a uma montanha de ideias. E revi velhos conhecidos que há muito navegavam no desconhecido. Esse turbilhão cultural, apimentado com lufadas do passado, permitiu-me refrescar o pensamento e permite-me, no dia seguinte, acordar com flores nos lábios. Não é por acaso que, quando tiro o pé da cama, ouve-se um pássaro a chilrear.

                No exterior, a manhã é uma pequena noite porque as nuvens são tristezas que correm para a linha que divide o céu da terra. Perto da igreja, as beatas falam da vida dos outros. Do outro lado da praça estão bocas secas e línguas afiadas, que apenas dão caneladas na gramática ou dizem mal de quem aparece na televisão. E por cima, a dois palmos das telhas, aparecem cabeças taciturnas para prever o futuro.

                Faço o mesmo. Mas a paisagem é um túmulo. Por isso fecho a janela e vou para o interior do ninho. Pouco depois, a tarde pinta o céu de azul e eu saio de casa com roupa de Inverno.

sexta-feira, 6 de março de 2015

HÁ UM ESTRANHO NA CAMA - Preguiça Magazine

          Os pássaros regressam aos ninhos porque a noite afugenta a tarde. Por isso as telhas e as árvores são casas de fados. No asfalto, os sapatos da menina Alzira, que passam muitas noites ao relento, varrem as folhas amarelas e os ramos apodrecidos. O objectivo não é limpar a rua que é quase uma travessa. O objectivo é pedir ao tempo que marque, no relógio, a hora de abrir “O teu cabelo está em boas mãos”. O cabeleireiro da dona Maria, inaugurado com champanhe francês e camarão grelhado, fora o ponto de encontro das coquetes, na época em que o dinheiro empanturrara carteiras inertes. Mais tarde, quando a crise chacinava o despesismo, tudo mudou. Até o sorriso da dona Maria. Mas o Zé da Tina, habituado às coisas difíceis, descobriu a forma de a esposa voltar a ter a Primavera no rosto.

          Por fim, o sino da igreja toca. Toca para logo ficar calado. Ao fundo da rua, a dona Maria faz crescer as sombras que saltam das casas. Nas fachadas, o silêncio, a viver por detrás das janelas, observa o cabelo a saltitar. Quando a menina Alzira a encontra, dá um suspiro. Um suspiro grosso, quase violento. É um gesto estranho, que roça no exagero ao de leve, mas a ânsia de afogar as brancas na cor do chocolate explica-o por completo. A dona Maria apercebe-se disso, mas faz de conta que não o viu.

          O cabeleireiro é um quadrado. Um quadrado com duas portas na parede dos fundos. A decoração é simples, talvez em demasia, mas o bar tem pormenores geniais. O estabelecimento tem então duas margens, e está, como tal, a léguas dos outros tempos. No centro está a máquina que dá banho ao cabelo. A menina Alzira senta-se nela, usando gestos apressados. E a dona Maria, conhecedora dos hábitos da cliente, dá um sorriso. Um sorriso lento, calmo, enquanto faz o que tem a fazer. Depois, com a toalha na mão, pede-lhe para sentar o corpo na cadeira de couro, onde o vidro mostra os efeitos do trabalho. Ela faz-lhe a vontade.

          Assim que a cor do chocolate sai do pincel e se mistura com a água, a água que baloiça dentro do copo, aparecem as primeiras palavras. A dona Maria foi quem as lançou, demonstrando que o negócio, para ter êxito, precisa de diálogo. Ao princípio, a menina Alzira usa frases curtas. Tão curtas, que os ouvidos ficam vazios quando recolhem as palavras do ar. Depois, o tiroteio não descreve, nem um pouco, as frases que lhe saem dos lábios. Mas, aos poucos, a voz acalma-se, perde fulgor. Isso permite-lhe contar, em pormenor, como foi assinar, na semana passada, o contrato de trabalho com a empresa dos Barrigas ao Sol. A novidade fabrica-lhe lágrimas na berma dos olhos. E produz júbilos grandes na dona Maria.

          Quando o secador fica calmo, as línguas ficam mudas porque a dona Maria produz veneno nos olhos. É um veneno que mostra desagrado. E o motivo está nos gestos que a cabeça da menina Alzira andou a fazer. Ela fica envergonhada, as bochechas assim o indicam, e olha para o cabelo que parece uma folha velha a cair sobre os ombros. Torce o nariz, como quem dobra papel, e pede-lhe, com timidez, para recomeçar o trabalho. A dona Maria, magoada com o passado, pega nas ferramentas sem lhe dar uma palavra. Entretanto, a menina Alzira, para dar outro destino ao silêncio dela, pergunta-lhe se a acha obesa. Ela diz-lhe que não, que pelo contrário. E acrescenta, sem migalhas azedas a sair do olhar, que poucas, com a idade dela, podem gabar-se do mesmo. A menina Alzira desconfia da frase – acha que há algum exagero dentro dela. Mas a dona Maria, habituada a interpretar olhares, diz-lhe que da boca dela só sai o que o coração lhe envia. Nada mais. A menina Alzira fica então acabrunhada, e vira-se. Depois, quase em surdina, pede-lhe desculpa. Ela aceita. Por isso a menina Alzira sacode os nervos do rosto. E aproveita o silêncio do secador para afirmar que, para a semana, vai para o ginásio. Comer muito e mal está a estragar-lhe as ancas.

          Por fim, o cabelo é uma camisa passada a ferro, uma estrada com alcatrão. E as brancas são uma página do passado. Uma memória com barbas grandes. Isso dá flores à menina Alzira, que tira da carteira uma nota de vinte. A dona Maria mete-a na registadora, e acompanha a cliente até à rua. Dizem coisas vulgares e coscuvilham a vida dos outros. Falam ainda do governo e criticam os impostos. Depois dizem adeus com os braços, como se fossem árvores empurradas pelo vento.

          Na rua, os candeeiros iluminam os passeios e pedem aos pássaros para silenciar as músicas. Não é por acaso que, em pouco tempo, lá em cima, o silêncio ganha corpo. Cá em baixo, a Alzira tem borrachas nos sapatos porque os passos são pequenas gotas a embater na calçada. Como tal, afirmar que o silêncio é imaculado, é ser falso. Dizer que ele não existe, é falsear o momento. Escrever que ele é magro, é ouvir a verdade.

          No fim da rua há uma praça. Uma praça com uma estátua no meio. É uma homenagem pobre a um homem grande, que no século passado descobriu muitas coisas. Depois há uma rua, que é uma linha estreita e escura. Por fim há uma porta, uma porta como todas as outras.

          A Alzira sobe os degraus. A madeira range e as sombras dão passos. No topo, a sala convida-a a pousar o cansaço no sofá, a desfazer-se do peso que traz no ombro. Ela rejeita o convite, e vai para o quarto. O conforto da cama dá outro mimo ao peso que tem nas pálpebras.

          Em cima do cobertor, com as pernas e os braços encolhidos, diz adeus à noite que a espreita da janela. Os sonhos acotovelam-se logo dentro dela, fazem guerras duras para saber quem a comanda. A viagem à América Latina faz fintas aos adversários, dá saltos estupendos. Isso abre brechas nos braços dos outros. Depois corre, corre como se fosse vento, e aproveita um lugar baldio para fugir à concorrência. Mais tarde, quando os obstáculos ficam para trás, a porta do pensamento abre-se ao vencedor e o sonho entra. Entra devagar. O corpo dela ganha então asas, asas fortes e longas que o levam para o Brasil. Depois para o México, para a Argentina, para a Colômbia, para a Venezuela, para a Bolívia, para o Chile, para o Peru. Depois há uma pausa. Uma pausa pequena para contemplar o Pacífico. E depois há a continuidade da viagem. Mas, ao contrário do início, o percurso apanha vento que é uma floresta densa, uma mão que abana o braço da montanha. As asas sentem os beijos do medo, os toques do receio. Sentem o grito do retorno. O corpo sente o mesmo quando o vento alarga os ombros, engrossa os músculos. Por isso ela acorda. Acorda como quem se liberta da forca. 

          O olhar dela vê a noite a deambular pelo quarto, a cumprimentar o silêncio como se fossem íntimos. Para dar luz à memória que paira perto dele, acende o candeeiro. Depois analisa todos os pedacinhos da viagem, todas as palavras trocadas com desconhecidos amáveis, com crianças felizes. Os lábios dela ganham então sorrisos perfumados e as bochechas imitam os cumes das montanhas. De repente, do outro lado da cama, há um movimento. Um movimento sussurrado, quase tímido. Ela vira logo o olhar para o mistério e, com perspicácia, fotografa o corpo de um homem, que tem os joelhos colados ao peito e as mãos sob a nuca. Encarquilha o rosto, alarga os olhos e recebe ideias no pensamento. Mas não há uma que a esclareça.