sexta-feira, 31 de agosto de 2012

DOIS VELHOS

Na varanda da sala, dois velhos namoram com o que dizem. E dão gargalhadas extensas quando o conteúdo é uma salada russa. Mas a tarde mistura-se com a noite e faz do dia um cubo de gelo. Cobrem a dor com os cobertores e saboreiam o crepúsculo, como se a memória quisesse fotografar as delícias da natureza.

SUGESTÃO

Obra-prima de Joyce, o melhor romance do século XX para muitos dos amantes da literatura, "Ulisses" viria a revolucionar a escrita de ficção e a tornar-se o mais idolatrado dos livros do século XX (só rivalizando com a "Recherche..." de Proust). E, como todas as obras-primas, alguns receberam-no mal no seu tempo (foi recusado por Virgínia Woolf para publicação na sua editora - "aquelas páginas tresandavam a indecência" - referido como "a coisa mais porca que alguém já escreveu", por D.H.Lawrence, proibido por muitos anos nos EUA). Mas hoje Joyce é autor consagrado e o próprio governo irlandês promove a sua obra. No dia 16 de Junho celebram-se os primeiros cem anos do Bloomsday, o dia em que se situa a acção de "Ulisses", com uma série de eventos um pouco por todo o mundo. "Há obras que nos convocam imperativamente para os sentidos do acto de ler. 'Ulisses' é uma delas. Tal como o texto de Joyce transforma os que o precedem, não há leitor que não se torne um leitor diferente depois de ler 'Ulisses'. [...] "A viagem do Ulisses modernos, Leopold Bloom, ocorre em Dublin, no dia que a história literária consagrou como Bloomsday. De Calipso a Ítaca (de sua casa a sua casa) se alonga a solitária errância que o reconduz ao ponto de partida. Pelo dia fora descansa numa igreja, lê a carta da mulher com quem se corresponde, assiste ao funeral de um amigo, passa pelo jornal onde trabalha, almoça num 'pub', compra um livro pornográfico para sua mulher, Molly, vê o amante desta partir para o encontro na sua própria casa, enfrenta um xenófobo bronco, masturba-se na praia em frente de uma rapariga, vai a uma maternidade e a um bordel, acompanha Stephen Dedalus, embriagado e agredido por soldados ingleses, e reentra noite dentro na sua cama, ao lado de Molly, que acorda, rememora a tarde ali passada com o amante e os amores antigos em Gibraltar, antecipa o concerto onde cantará 'Là ci darem la mano' e readormece junto do homem com quem não tem relações sexuais completas há mais de dez anos, desde a concepção do filho morto, Rudy." Abílio Hernandez Cardoso, Público, Mil-Folhas

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

LEMBRA_TE

Se beijares o mar ou se o agredires com um murro, vê: o que lhe fizeste só em ti tem efeitos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

PESCA

Os velhos entopem a superfície que rodeia o farol. Os peixes, com as tripas de fora, dão o sinal de que a morte, bicho medonho, espreita sempre os corpos dos vivos. Mas ninguém está atento a ela, porque as canas avisam os pescadores que do mar estão bocas presas ao isco. Enquanto crescem os sorrisos, as ondas embatem nas pedras com violência, como se dissessem ao paredão que as palavras irão para o tribunal.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

MULHER

A mulher é certamente um elemento humano fora do comum: as casas só não envelhecem porque ela existe.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

SIMPLES

Se o progresso dependesse dos domingos ainda andamos de carroças e falávamos latim.

domingo, 19 de agosto de 2012

FOGO NA COZINHA

O casal enfia o avental no tronco. Dá um beijo e tira os tachos dos móveis. A confecção do jantar vai começar. Inexplicavelmente, pouco depois, o fogo apodera-se dos plásticos e dos panos. De seguida, a fruteira fica sem rosto. Por causa disso, os olhos dos aflitos ficam com medo. Ao longe, os gritos dos vizinhos são de alcateia assustada. Até a sirene dos bombeiros reclama a presença dos homens do sossego. Mas as mãos da velha, que é uma senhora de boa cabeça, asfixiam o fogo com a humidade de uma toalha.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

DE TARDE

Saio de casa. Estou farto de a sentir no corpo. Ao pé da câmara pouso o cansaço num banco de pedra e ouço os velhos a discutir. Parecem metralhadoras a disparar. Para não sentir os chumbos no âmago, fujo. Corro como os pássaros que tentam fugir do inverno. De súbito ouço um barulho rouco. Investigo a vizinhança e, ao longe, vejo motas aos pulos. Aproximo-me, “Vai, vai, vai carago”, “Ena, aquele é bom!”, e o silêncio volta à pista quando elas desaparecem na curva. Pouco depois, os motores voltam e as vozes acompanham-nas. Sorrio, adoro ouvir os gritos do povo.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

FÉRIAS

A chuva desce até à rua e encontra a solidão no asfalto. Os transeuntes, desfeitos em lágrimas, aproveitam as férias para beijar as sombras. Infelizmente, as minhas ainda estão ao pé do horizonte, onde o dia e a noite casam-se com o crepúsculo. Mas o meu ofício, que é o de ler, não me faz enfado e nem me asfixia. Por isso é que ando aos saltos e banho-me em sorrisos, numa altura em que o meu corpo está cheio de cansaço. Pouso o livro do Lobo Antunes na mesa e vou à cozinha. Depois ligo o fogão e faço um assado, enquanto massajo o lombo do Vieira: o cão da minha tia.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

SUGESTÃO

Se Púchkin foi o grande poeta da literatura russa moderna, Nikolai Gógol foi o seu grande prosador. E Almas Mortas o seu grande livro. Este ucraniano, morto de doença nervosa e desespero espiritual aos 42 anos, imaginou uma grande obra épica que não só retratasse a Rússia como lhe delineasse o futuro. Imaginou essa obra em três "tempos", à maneira de Divina Comédia, por esta ordem: o inferno, o purgatório, o paraíso. Pelas vicissitudes da sua vida e do seu percurso espiritual, Gógol ficou-se pelo inferno, ou seja pelo I Tomo de Almas Mortas, que aqui apresentamos traduzido do original russo. Conta a chegada do vigarista Tchítchikov a uma cidade provinciana da Rússia esclavagista com o intuito de comprar aos senhores da terra locais, para fins inconfessáveis, "almas mortas" (servos da gleba já falecidos mas que ainda constavam dos registos de recenseamento como vivos). Estilo mordaz mas subtil, uma veia satírica e uma escrita moderna ainda hoje inimitáveis, aprofundamento dos caracteres até ao osso - é assim Almas Mortas. Gógol ficou-se pelo primeiro tomo porque queimou por duas vezes os manuscritos do segundo. Abençoado auto-de-fé: no que restou do segundo tomo (salvaram-se do fogo cinco capítulos, cuja tradução está também incluída nesta edição), o seu humor corrosivo já só aflora de vez em quando, a preocupação religiosa do autor em regenerar as almas, o seu afã em reanimar uma ordem social moribunda teriam deixado o resto de Almas Mortas a grande distância da parte genial publicada.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

CAMPO

A tarde entristece-se. As nuvens pardacentas, que cobrem o céu azul e empanturram o horizonte, são o veneno dessa melancolia. Alheios a isto estão os agricultores, porque a batata obriga-os a esgravatar a terra com cuidado. Sobre os ramos das árvores, os pássaros observam os movimentos das enxadas. Parecem bastões a pontapear as costas dos insurrectos. Na retaguarda da guerra estão os pequenos, que enchem panelas e tachos com o legume castanho. Não têm beiços azedos, mas também não estão cobertos de sorrisos, embora, quando as mães trazem os gelados, o mundo dissolve-se na algazarra.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

GRITOS

Estou dentro de um armazém. O calor, de peito feito, assa-me com vivacidade. A solidão, escondida por toda a área, não abre uma janela para me ajudar. É preciso que a lucidez me indique o caminho da saída. A amizade, aquela que tem o brilho da verdade na sua essência, só se entrega a quem ajuda, a quem oferece a mão ao homem mais decadente, ao homem mais errante, ou então à coisa mais fascinante, que neste caso, é a algo que se prende a mim com unhas e dentes. Por vezes, o inesperado é maior do que o mundo, é maior do que o previsto. De volta à rua, onde os pássaros espreitam os lanches dos homens, sacudo as gotas de suor que me inundam os vincos da testa. A tarde, porém, esconde-se no meio da noite e dá à fresquidão a oportunidade de refrescar as vozes entristecidas. De súbito, ao pé dos bombeiros, um adolescente grita: “Fogo! Fogo! As casas do Magalhães estão em perigo!”, ao ouvi-lo, os tanques de água saem do edifício e correm na direcção do monte. O Zé, de palito nos dentes, coça a careca e faz uma pergunta: “E se fosse a minha casa?”, observo-o e encarquilho o rosto.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

MENTIRA

Abro a janela e vejo a noite a brincar com as cabeças dos montes. O frio, no entanto, obriga-me a fechar o meu domínio. É então que ouço os gritos dos vizinhos: “Tens de confiar em mim, amor”, “És uma cadela mentirosa. Não dá para confiar em ti”, “Tens de confiar”, “Não tenho nada”, “Tens!”, “Merda. Não me fodas a cabeça, cadela”, “Eu não te menti. Acredita em mim”, “O meu cunhado disse-me que te viu no cinema e tu a mim disseste-me que ias ao cabeleireiro. Como queres que acredite em ti?”, “Tens razão, tens razão, mas eu não te menti”, e o choro apaga o argumento.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

PROMONTÓRIOS

“Quero-te beijar os promontórios”, foi a frase que ouvi, quando coloquei o cansaço no parque da cidade, onde as crianças namoram com os baloiços e os velhos jogam cartas. Ao pé destas massas alegres estão sempre os pardais, de olhitos a mirar o pão que cai lentamente na relva, “Quero-te beijar os promontórios”, espreito. Por detrás de uma oliveira estão dois adolescentes abraçados. As bocas, tremeliquentas, percorrem os corpos em êxtase, “Quero-te beijar os promontórios”, “Aqui não”, “Anda lá”, “Não insistas”, “Anda lá”, “Que raio de rapaz!”, e as mãos do desesperado apoderam-se dos peitos da menina, “Aqui não. Aqui não”, “Anda lá”, “Não”, e este último não, que foi um gemido poderoso, a roçar a violência, obriga-o a cair na tristeza como quem cai numa poça. Os olhos da donzela, aflitos, ficam com remorsos. É então que do céu vem um enorme dilúvio, ideal para varrer maus pensamentos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

HISTÓRIAS

A noite aproxima-se dos pés do dia e enfraquece a tarde. Daqui a pouco, no calendário, surgirá a mudança do número. Esta metamorfose natural, que traz velhas monotonias às cidades, engrossa a história da humanidade. Nenhum livro tem tantas páginas como o somatório de todas essas estórias.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

SUGESTÃO

«O movimento, ocupação de lugares diferentes em instantes diferentes, é inconcebível sem o tempo; igualmente o é a imobilidade, ocupação de um mesmo lugar em pontos diferentes do tempo. Como pude não sentir que a eternidade, ansiada com amor por poetas, é um artifício esplêndido que nos livra, embora de maneira fugaz, da intolerável opressão do sucessivo?» «Esta pura representação de factos homogéneos – noite em serenidade, ar límpido, cheiro provinciano da madressilva, bairro fundamental – não simplesmente idêntica à que houve nessa mesma esquina há tantos anos; sem parecenças nem repetições, é simplesmente a mesma. O tempo, se pudermos intuir esta identidade, é um desilusão: bastam para o desintegrar a indiferença e a inseparabilidade de um momento do seu aparente ontem de um momento do seu aparente hoje.»