quarta-feira, 28 de novembro de 2012

TELEVISÃO

Desligo televisão. Ultimamente, o aparelho só me dá maus programas. Já pensei escrever uma carta e remetê-la para os doutores – os tipos que definem as estratégias. Mas perdi a vontade quando a lucidez me disse para ter juízo. Depois vou até ao quarto dos meus pais. E reparo, assim que entro, que os olhos deles estão fechados. É provável que o comboio do sono já lhes tenha estacionado o cansaço numa quimera. Dou-lhes então um beijo e vou para a cama.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

CAMINHO

A noite já pintou o céu. E as estrelas, olhos de alguém, iluminam a pedra que define o caminho. Os transeuntes agradecem. Mas os fantasmas, escondidos na erva alta, ficam zangados porque a luz denunciam-nos. Por isso é que os ouço a guinchar; por isso é que vejo a tristeza a saltar para longe. Dou um suspiro, um suspiro profundo, e abano a cabeça. Depois, quando os músculos do pescoço me vociferam, continuo o meu caminho até encontrar a sala dos sorrisos.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

GRITOS

Dois gritos invadem-me a garganta e obrigam-me a matar o silêncio. Por causa disso, os vizinhos acordam e perguntam-me se preciso de alguma coisa. Digo-lhes que não, usando as lágrimas, a calma e os dentes para modificar a voz. Mas a amizade diz-lhes que estou a mentir. Voltam então a perguntar. E eu volto a responder como respondi. Depois fujo. E aproveito a noite para me esconder numa toca, onde posso namorar a solidão e onde posso pedir ao céu um desejo.

HOMEM

A mão arrasta as migalhas para o chão. Por isso a mesa é o céu sem nuvens, é o mar sem ondas. O dono dessa proeza é o Jaquim, homem gordo, pálido, que olha para as coisas como se visse a morte estendida ao sol. Há quem lhe mostre que a vida é mais do que isso; que a vida também é feita de outras coisas. Mas o olhar do homem é persistente e a mente inviolável. Há quem lhe diga que a vida é para se viver, como fazem as crianças no recreio da escola. Há quem o abane e o faça engolir a comédia. Ou o divertimento. Mas os olhos do homem, do homem que perdeu os beijos da mulher, apenas querem reencontrá-la junto a um miradouro, onde se vê o mundo em minúsculo.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

SOLIDÃO

A rua está cheia de carros. Mas a solidão escorre pelo asfalto como se fosse um rio à procura do mar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

ENFIM

Infelizmente, quando damos dois passos para a frente, há sempre alguém que nos tenta tirá-los. Felizmente, como somos feitos de certezas e de determinações, ziguezagueamos os problemas com facilidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

PARLAMENTO

Ligo o rádio, depois de levar a cara e os ouvidos. A noite trouxe-me vozes que me vociferaram ideias do diabo. De súbito, o parlamento, sem autorização, entre na minha casa e diz-me que para o ano vou pagar mais impostos. Alargo o olhar e mostro-lhe os dentes. Mas não obtenho resultados. Por isso pontapeio o aparelho e peço às pernas para me levar até à praia, onde as gaivotas tocam a música da paz.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

CATRAIA

O céu está cheio de nuvens. Mas são nuvens com fissuras. Por isso é que o sol, perto do horizonte, varre o cinzento das cabeças dos prédios. Está frio. Muito frio. Embora, para a catraia que está ao pé do sobreiro não está, porque a saia parece um cinto e a camisa um sonho, para quem usa a noite para se masturbar.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

PALAVRAS TOLAS

Troveja. E volta a trovejar. As luzes da rua e dos apartamentos assustam-se e fogem. Por isso a noite acentua-se. Alguns animais, ao vê-la com o corpo gordo, fazem barulhos esquisitos e atacam indefesos. Não sei porque o fazem. Mas os entendidos nestas coisas, com eloquência, afirmam nos cafés, onde o nevoeiro cega os olhos, que a terra vai tremer. Ou, na pior das hipóteses, o olho do vulcão, vai cuspir lava. Sinceramente não acredito. Não acredito nessas coisas. Nessas hipérboles desmesuradas. Não é de estranhar, portanto, que as minhas costas digam adeus às palavras baldias e aos leigos, que têm os dedos a escarafunchar as tocas dos narizes.

domingo, 18 de novembro de 2012

MANHÃ

A manhã está quente. Há muito que não a via assim. Por isso quero aproveitá-la; quero contar-lhe um segredo que me aflige. Mas o despertador, sentado na cómoda, dá-me tautau aos ouvidos. Fico triste, quase que choro, mas o tipo tem razão: preciso de trabalhar.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

SIMPLES

Saio de casa sempre acompanhado pelo Inconformismo, com quem vou ao café todos os dias.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

SUGESTÃO

Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com exceção de "A aproximação a Almotásim", incorporado a outra obra) e outras dez narrativas com o subtítulo de Artifícios. Nesses textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjecturas e perplexidades sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses, às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante. Em Ficções estão alguns de seus textos mais famosos, como "Funes, o Memorioso", cujo protagonista tinha "mais lembranças do que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo"; "A biblioteca de Babel", em que o universo é equiparado a uma biblioteca eterna, infinita secreta e inútil; "Pierre Menard, autor do Quixote", cuja "admirável ambição era produzir páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes"; e "As ruínas circulares", em que o protagonista quer sonhar um homem "com integridade minuciosa e impô-lo à realidade e no final compreende que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando".

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

E AGORA?

Há quem cruze as pernas e olhe para o mar. E tire daí esta ideia: “Puxa, o trabalho é duro!”, mas há quem coloque as mãos na vassoura e esteja de madrugada a varrer o serviço. Qual das atitudes devo seguir?

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

BEIJOS

Duas palavras, colocadas no sítio certo, dão alegrias a quem sente no pensamento os gritos na morte. Mas dois beijos, daqueles suculentos e ternurentos, mostram a luz a quem tem nos olhos a mão da escuridão.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

SIMPLES

Tenho o corpo com frio. Mas as palavras, que estão encapadas, dão-me o conforto necessário para dormir calmamente.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

SIMPLES

Sinto beijos no rosto. E isso faz-me ter cócegas no interior.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CHUVA

A chuva cresce. Cresce continuamente. Nas costas da rua, a água acumula-se e, como as sarjetas estão entupidas, o asfalto dá lugar ao rio que corre até às portas do jardim, onde as asas dos pobres levam-nos para as tocas do medo.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

SUGESTÃO

Joaquina da Ega (que mais tarde se virá a saber chamar-se Genoveva), natural da Guarda, casada com Pedro da Ega, vivia em Lisboa. Mas, logo após o nascimento do filho, abandona este e o marido para fugir com um emigrado espanhol. Em Espanha, torna-se cortesã. Entretanto, Pedro da Ega morre em Angola. Joaquina casa-se depois com M. de Molineux, um velho senador, com quem vive em Paris. Mas a queda do bonapartismo, trazem-na de volta a Portugal, agora com Gomes, um brasileiro, já que o senador havia falecido. Faz-se, então, passar por Mme. de Molineux. Em Lisboa, instala-se na Rua das Flores. Logo se envolve com Dâmaso de Mavião, a quem irá explorar sem piedade. No entanto, apaixona-se por Vítor, um jovem de 23 anos, bacharel em Direito. Quando faz 40 anos repele Dâmaso, planeando voltar para Paris com Vítor. O tio de Vítor, Timóteo, o único detentor da trágica verdade, tenta acabar com a relação dos dois. Decide, então, contar toda a verdade a Genoveva. Ao saber que era amante do seu próprio filho, Genoveva atira-se da varanda de sua casa, na presença de Vítor, que nunca chegaria a perceber tal atitude nem a saber a verdade.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

VOZES

As vozes são como pedras, como ramos secos no meio da tarde: o silêncio é uma ordem que se espalha pelo cemitério. E termina na periferia, onde os euros dão lugar a flores. Mas no púlpito, espetado junto à capela mortuária, o padre, de aspecto tísico, rasga-o timidamente. A tristeza, agarrada aos nomes que estão gravados nos jazigos, levanta os lábios trémulos e canta, colocando alguns dedos sobre o coração.