quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Maravilha


O sol ainda espreita o longe, no último canto do dia, e os retardatários abraçam a areia quente das tristezas, porque o pedaço da tarde esvoaçou a maravilha.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

E tudo o vento leva


O frio arrepia o susto, na escuridão do dia. Talvez por isso, a rua não absorve vida como devia. Aqui dentro, o mar de gente desliza o tempo com a leitura de palavras, estampadas nos livros, nos jornais, nas revistas.
E assim se faz o namoro com as férias.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

As folhas no areal


O vento soprou e o sol voa agora sobre o meu corpo que se passeia na marginal. E ele, aberto aos sorrisos, olha para o mar de folhas pequenas que amassam o areal, e murmuro, "Nunca vi tanta gente a ler".

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A câmara que filma


No jardim da cidade, o reboliço cresce desmesuramente porque um microfone e uma câmara de filmar, com um símbolo muito florido, poda os olhares azedos ou os olhares estremunhados, que passeiam a manhã em passos trôpegos. Ao bulício interrogador, que faz desaparecer os verdes verdejantes, os senhores do poder, assentes em bicos de pés, constroem o palco do mundo como se fossem a nata imaculada de um sonho.

A uma distância segura, rastejo o corpo sobre uma cadeira desconfortável, que abraça uma esplanada cheia até aos dentes. Embora sinto os pares de olhos a perscrutarem o enredo da magote, com os lábios a morderem o café em chávenas muito descosidas da verdade iniciada, o cheiro daqueles senhores é consumido com uma certa indiferença.

Quando pouso a chávena amarrada na solidão, as luzes acendem-se, a câmara lança um pontinho vermelho muito fininho na nossa direcção e os comentadores atiram palavras com sabor. No seguimento, as cabeças iletradas esbracejam a brutalidade, "Ó mãe, estou aqui".

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Finalmente


E eis que o sabor do sonho materializasse num texto de 170 A4. Foram longos meses a chorar com desespero, a morder o tutano da desistência, mas as sombras da noite amarravam-me sempre ao computador, como se fossemos irmãos muito unidos, muito únicos. Estou grato eternamente a elas.
Mas estou também grato à paciência dos meus pais, porque “o tempo não tem tempo” e tudo passava rapidamente sem o beijo da minha presença, sem o abraço das minhas palavras a bailarem a sinopse do dia. Transformei-me assim por longas eternidades, num fantasma sem rosto, num invisível sem sentimentos; transformei-me, portanto, num rio que não desaguava no dorso do mar. Mas eles sempre me viram a boiar na felicidade, através dos vincos do meu rosto. E assim, a desilusão de não terem o meu corpo, desaparecia por entre a satisfação do meu contentamento.
Não sei o que dizer mais. Talvez um obrigado me falta: OBRIGADO.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ler


EMÍLIA FERREIRA - CARTOGRAFIA ÍNTIMA

Nasceu em Lisboa, em 1963. Licenciada em Filosofia (FLUL). Mestre em História da Arte Contemporânea, (FCSH/UNL) e doutoranda em História da Arte (FCSH/UNL). Começou a publicar em 1987, tendo colaborado com O Jornal, Público, o suplemento DNA (do Diário de Notícias) e revista MID. Tem ainda colaborações dispersas pelas revistas Seara Nova, Escritores, Faces de Eva, Margens e Confluências, Casa & Jardim e Rua Larga.Na ficção, tem dois romances publicados: O Espelho Que Reflecte (Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 1998) e No princípio do mundo, uma tâmara (Prémio Literário Vasco Branco, Câmara Municipal de Aveiro, 2001). Recebeu ainda as seguintes menções honrosas com as colectâneas de contos Obsessões Exemplares (menção honrosa no Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca, 2004) e Visões do Azul (menção honrosa no Prémio Literário Carlos de Oliveira, 2004). Outros prémios: Prémio Literário Afonso Duarte 2007/2008 (com uma monografia sobre Mily Possoz); Prémio Literário Branquinho da Fonseca – Conto Fantástico, 2007; Prémio Literário Almeida Firmino, 1996; III Edição do Prémio Literário 25 de Abril, 1994.


No meio do caminho, Helena recupera o corpo de mais uma cicatriz, quase fatal - o coração que falha… mas revive. É então altura de lembrar as suas idades, o convívio contido com a mãe, Eduarda, a distância atenta com a filha, Matilde, mas, sobretudo, o convívio com a avó, Beatriz, lembrando dela que a pele não deve chegar intocada à última morada. E Helena viveu: primeiro, dividida entre uma amizade de infância e um casamento de conveniência, que oficializa metida dentro de um vestido inacabado, derradeira maldição da amiga Mariana, que assim vinga a sua sexualidade interrompida. Depois, dividida entre a obediência à tradição familiar, governada pelo verbo «manter», e o desejo de marcar na pele uma vida adiada, longe da clausura, que até então apenas pôde entrever durante uma viagem pela Europa, na adolescência. Helena acolhe agora a vida plenamente, entregando a pele à experiência verdadeira do amor, das coisas mais simples que se havia negado, até que a doença ameaça a sua vida e o seu coração. Perto do destino final, há oportunidade de redimir a rivalidade entre Helena e Mariana com um vestido perfeito, fechado, e cumprir assim o destino que a cada uma pertence… agora, mas não tarde de mais. Cartografia Íntima é notável ao percorrer quatro gerações para encenar o retrato de uma mulher em transformação, procurando, no desenho do seu íntimo, a essência da intuição e psique femininas. O desencontro de amor, o destino pessoal e a tragédia de uma doença grave, sem ressentimentos, sem uma percepção fatalista, são temas fulcrais donde as personagens emergem com uma dimensão verdadeiramente humana e rara na literatura portuguesa contemporânea.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Talvez um pouco mais


Incêndios e mais incêndios polvilham a terra de ninguém, no fim deste mar de telhas. E a eloquência que destroça as almas em alvoroço, os bombeiros correm para o inferno, de cravos vermelhos na ponte da esperança.
Já a noite baloiça as lufadas desesperadas, quando a frente do mal arrasa com o choro débil. É então que os braços carregados de dores descobrem a insuficiência de meios.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O rosto negro


Depois do trabalho, corro para casa como se tivesse asas no dorso, porque as palavras me saltam na ansiedade. Instantes decorridos, dispo-me da máquina com rodas na toca das sombras e subo as setenta e duas escadas num só fôlego. Assim que venço a última, a saliva sem oxigénio tropeça num papel colado na porta do vizinho. Acumulo bisbilhotices nas orelhas até sentir a inevitabilidade nas vontades. Aí, já quase no desespero, deslizo o olhar para o texto, “Este imóvel está em hasta pública”. Deito-me com as exclamações no abismo inexplicável e farejo que o Doutor dos Doutores, sempre acorrentado ao ouro, me sorriu ontem com um cheque sem cobertura.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A noite das gargalhadas


Quando a noite morde o dia, as luzes e luzinhas acendem-se com opulência. Ao mesmo tempo, do outro lado da margem, na terra recalcada pela história, começa um combate medieval. Guerreiros e cavalos esgrimam uma ficção quase real dos primitivos, enquanto que as donzelas, peito para a frente, correm como dementes para as ervas altas.
Aos meus lados, um grande mar de algas come o fundo empapado de pó e esconde as barraquinhas com petiscos do céu, que eu não paro de as olhar. “Mata o cabrão!”, estremeço pelo súbito, desferido por uma voz grossa ao meu ouvido direito. Digo adeus ao fumegar dos deuses, com um pequeno desgosto a roçar nos lábios, e cravo o olhar no malvado. Este, de dedo a escarafunchar as aberturas do nariz e de balão proeminente, faz saltar palavras que não lembra ao diabo. Encarquilho uma fúria nas fuças e abro a boca para o colocar no respeito. Mas, pouco antes do som da minha voz rasgar o ar, o tipo arrota, “Aquele caralho nunca mais morre”, e toda a gente desata às gargalhadas malucas.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Quando achamos que sabemos


Com impropérios para o ar e com cuspidelas para o chão de areia, minado por grandes crateras, o futebol arrota golos para a noite, que está despida de fantasmas.
Na bancada de madeira, os homens taciturnos olham os movimentos dos jogadores, bramindo um gemido surdo com algum lance mais perigoso, enquanto que as mulheres gritam uns agudos arrepiantes, por tudo e por nada, com bebés nos braços a dormirem um sossego. Coloco lenços de papel nos pobres dos meus ouvidos para não os ouvirem, em fugacidades desmedidas, e sorrio de prazer quando o silêncio beija-me a paz. E é com ele a seguir o meu olhar que, do lado oposto, um tipo vestido de preto corre como um maluco, fugindo dos paus da magote e das suas palavras, “Anda cá, ó gatuno”.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Ler


Manhã Submersa é um romance de Vergílio Ferreira publicado em 1953.
O livro retrata o dia-a-dia da vida num seminário e será um pouco biográfico uma vez que o seu autor passou vários anos a estudar num seminário.
Foi adaptado ao cinema em
1980 num filme realizado por Lauro António: Manhã Submersa (filme).

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Simplesmente não te quero


No computador, o cursor estanca o último mistério da personagem principal, porque o cansaço apodera-se dos meus dedos. Sacudo o vermelhão dos olhos e, quando o bulício do frigorífico me beija o silêncio, vejo que o escritório engaiola a penumbra. E é por ela passear nestes limites, sem aviso prévio, que um bocejo salta do meu corpo esfomeado de descanso.
Já na cama, a respirar o calor que se evapora do tijolo das paredes, a minha vizinha do piso superior arremessa subitamente a afirmação, “Não te quero ver mais, seu palhaço. És pior do que um rato”, acendo a orelha, “Mas querida, eu perguntei aquilo para esclarecer as minhas dúvidas. Penso que não há necessidade de morder o exagero”, diz uma voz quase apagada, “E mais a mais, ficas a saber que eu tenho um amante”, “O quê?”, e adormeço quando o modernismo esbarra na minha compreensão.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Eterna indecisão


Num adeus pouco chorado, a marginal desprega-se do asfalto para cobrir-se com pernas carregadas de escuridão, que dançam a samba da sedução, enquanto que as gaivotas sobrevoam o infinito em ziguezagues muitos recortados, libertando de quando em quando a diarreia que um peixe podre lhe provocou. Que depois de um voo vertical, a massa pestilenta explode nas cabeças distraídas.
Os infelizes, a escorrerem a vergonha no corpo, esbracejam impropérios para os sorridentes voadores, como se fossem fantoches a digladiarem-se na guerra. Eu, com os glúteos sentados num banco pensado pelo Siza, gargarejo gargalhadas que nem o mais feliz, quase agarrado ao descuido de um tombo.
Por fim, tudo evapora-se, ficando a monotonia dos gestos a namorar o presente e os bramidos de um cigano, que tenta vender bugigangas que lançam bolinhas de sabão para o ar. Num deles, talvez no mais sentido dos berros, uma criança lambe com o olhar o plástico colorido, agarrando-se na borda do carrinho metálico e dizendo, “Mãe, quero um”. Os pais travam a velocidade alucinante dos passos e espreitam-no de soslaio, “Está bem, escolhe um”. O pequeno infante olha, olha e por fim, “É este”, “Boa escolha”, diz o cigano, que logo o agarra para o embrulhar, “Espere, deixe-me pensar melhor”, e a noite chega subitamente, com os pais a tremelicarem de frio e o cigano a ressonar um cansaço, quase junto ao meu ombro esquerdo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Sinto que vos amo


E quando os dias são todos somados, em gestos de alentejanos ao sol, verifico que junto letras há um ano no recanto do meu blog, que sempre duvidei que ultrapassasse a vontade de um mês, talvez dois, porque o meu sentido de disciplina fora sempre o impulso da novidade, nada mais. Mas o bicho do amor mordeu-me nos dedos da mão direita, rasgando os ossos do ócio, com as suas mandíbulas invisíveis aos meus olhos.
Não o reconheço por entre as magotes dos seres que vejo nos microscópios do laboratório, e isso aflige-me, deturpa-me o sossego em actos tão repentinos, tão fugazes, que a morte súbita de um corpo nunca alcançará o mesmo movimento, uma vez que a minha educação obriga-me a brotar agradecimentos. Fico doente até que a demência apodera-se do meu cérebro, chorando por não o ver, como se eu fosse a fonte de um rio.
Mais tarde, com a cabeça esquecida do desgosto, pego no “Primo Basílio”, do Eça de Queiroz, pego na “Metamorfose”, de Franz Kafka e pego no “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago, juntando todas as pessoas que me empurram para as letras, e agradeço-lhes por me mostrarem o caminho dos sorrisos, de joelhos a beijarem o sobrado do crepúsculo, murmurando, “Obrigado”.