quarta-feira, 31 de outubro de 2012

HÁ NOITE A MEIO DA TARDE?

Há noite a meio da tarde? Para mim há. Basta olhar para os gestos, para os sorrisos, para os olhos dos senhores que percorrem as rectas da cidade, para perceber que o dia é constituído por pontos negros, que se assemelham a olhos do diabo. A crise talvez explique esse fenómeno, esse flagelo que nunca abrangeu os meus sonhos. Felizmente, a minha cama nunca se transformou num lago, ou numa arriba medonha, ou numa Assembleia da República, onde as vozes do poder me obrigam a votar em coisas que pensei nunca dizer sim. Felizmente, a minha cama só me tem dado sorrisos, só me tem dado bons presságios. É o que eu gostava de dar aos olhos pardacentos. Mas a minha pequenez impede-me de ser grande.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

SALTO

Salto depois de abrir a clarabóia. E as pedras da cidade, que observam os passos dos anos, amparam-me como se eu fosse uma montanha. Por isso não perdi o vigor, nem fracturei os ossos, nem perdi ideias. Fiquei desapontado, porque tudo deve morrer na data que quer. Mas expulsei-o do pensamento, a pontapé e a empurrão, quando as lágrimas me dizem que a amizade imaculada encontra-se sempre na vivenda do improvável.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

POR CIMA...

Está escuro em cima das árvores, em cima das nuvens, em cima das estrelas. O avião, no entanto, deixa ficar um fio de dia que se apaga quando o vento tropeça no atraso.

NADA

Tenho os pés descalços. A alma não lhes fica atrás. O pensamento segue-lhes as pisadas, como se fosse alguém a seguir um caminho traçado por um grupo. Mas as mãos, com uma lucidez profunda, quase mitológica, dizem-me para me afastar do nada. De facto, o vazio é uma forma de morrer, é uma forma de viver a desilusão como nenhuma outra. O vazio é ter lágrimas coladas ao corpo, é ter a tristeza encravada na garganta. Como não as quero perto de mim, como não as quero dentro de mim, agarro num livro e deixo-me mergulhar nos pântanos da emoção.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

VIDA

O meu corpo caiu nos rios da amargura, onde os beijos não existem. É certo que os braços dos amigos tentam empurrar-me para as margens ou para ilhas dos sorrisos, mas também é certo que a bala continua ao pé do coração. Porém, amanhã irei respirar com outra desenvoltura e irei retira-la com o esquecimento. Não há outra forma de encarar as coisas; não há outra forma de viver.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

TARDE

A tarde cresce. Sob as oliveiras, o camponês brinca com o cão. O cachorro, de pêlo escuro, embora no dorso surjam pequenas manchas brancas, saltita e ladra como se afirmasse que o domingo é um dia especial. Porém, pouco depois, a noite pinta o céu e esconde as montanhas, que recortam o horizonte com formas hilariantes. Talvez por isso, os rostos perdem o fulgor dos sorrisos e os corpos arrastam-se tristemente para os ninhos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

SUGESTÃO

«[...] incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos. Basta passar em revista o imaginário deste fim de século -- da ficção à música, do cinema ao teatro, da biologia à tecnologia -- para ter uma ideia do ponto a que chegou um mundo onde o horror se tornou invisível, consumido como pura virtualidade, para ter uma ideia da metamorfose da cultura humana. Pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados -- desde a económica até à da legalidade e da ética -- releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor.»

SIMPLES

Duas palavras são duas ideias; são duas forças do pensamento.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

POBRES COITADOS!

As nuvens embrutecem os pensamentos dos caminhantes. As notícias, que pincelam as folhas dos jornais, seguem o mesmo caminho. E os políticos, de pernas cruzadas e agarrados ao conforto, dizem-lhes que o bolso vai ser esvaziado com afinco. Pobres coitados! Não lhes gabo a sorte!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MINISTRO DO CORTE

O ministro do corte encheu os ouvidos dos portugueses com palavras de corte. É provável que amanhã continue com o mesmo raciocínio. E se as coisas não forem na direcção do abismo, para a semana, ou para a outra, ele irá encarregar-se de as levar. “Custe o que custar”, o pobre tem que passar fome e o rico tem que comer lagosta.

AS COISAS

As coisas sonhadas só têm o lado de cá. Não se lhes pode ver o outro lado. Não se pode andar à roda delas. O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados. As coisas de sonho só têm o lado que vemos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

SIMPLES

Saí de casa. Preciso dos aromas do dia para sobreviver à noite.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

MIMOS

Dois viajantes percorrem a noite que morde as ruas e as fachadas. De vez em quando, em sentido contrário, surgem alguns vultos taciturnos. Ao pé da câmara param e sentam-se sobre a madeira. O cansaço é um martelo que lhes desfaz os ossos. Mas o relógio diz-lhes que a cama precisa de mimos.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

AMIZADE

Ao fundo, perto da janela, está um sofá revestido com uma manta esfarrapada, que mais parece uma osteoporose complicada. O sentimento que Amadeu tem ao objecto não lhe permite, no entanto, desfazer-se dele. Conhecedores desta realidade, deste vício desmesurável, os nossos corpos ficam a dois dedos de distância do conforto. Mas a dor da mentira não nos pinta os rostos, não nos sai dos lábios.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

SUGESTÃO

Em apreciação crítica à obra de Tolkien cuja edição portuguesa apresentamos, o Sunday Times escrevia que o mundo da língua inglesa se encontra dividido em duas partes: a daqueles que já leram O Senhor dos Anéis e aquelas que o vão ler. Não se enganava o crítico ao indicar assim que estamos perante uma obra de leitura obrigatória, que, sem qualquer sombra de exagero, se insere entre as mais notáveis criações literárias do nosso século. Situando-se na linha de criação fantástica em que a literatura inglesa é fértil (lembramos Jonathan Swift com As Viagens de Gulliver, lembramos Lewis Carrol com a sua Alice nos País das Maravilhas), Tolkien oferece-nos uma obra verdadeiramente monumental, onde todo o mundo é criado de raiz, uma nova cosmogonia arquitectada por inteiro, uma irrupção de maravilhoso que é admirável jogo de criação pura. O sopro genial que perpassa na elaboração deste maravilhoso, traduzido sobretudo no realismo da narração, deixa no leitor o desejo irresistível de conhecer "esse" mundo que, como crianças, chegamos a acreditar que existe. A Irmandade do Anel é o primeiro volume da trilogia O Senhor dos Anéis, em que se integram também As Duas Torres e O Regresso do Rei.

sábado, 6 de outubro de 2012

AMOR

Na lareira, o lume arde, rubro. Debaixo do telhado há uma cama; as nossas mãos, entrelaçadas, fazem palavras que nos indicam que o amor, imaculado, está a viver dentro de nós. Para as saborear, ergo a cabeça, cerro os olhos e deixo que uma parte de mim volte a encontrar a porta da tua casa.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

VINDIMA

A noite abre as portas do horizonte e penetra no céu, escurecendo-o. As luzes das estradas, amarelas e brancas, iluminam a dúzia de pessoas que vindimam. Por causa disso, os sorrisos são estrelas que me indicam o cansaço dos corpos. Mas as mãos, grossas e arranhadas, esburacam com vivacidade os braços das vides. Sorrio e peço a Deus que o país veja neste exemplo o caminho que contorna os obstáculos.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

ACÇÕES

Nos rostos das pessoas, que castigam as acções dos outros, encontra-se, sob as pálpebras, a incoerência. Quem critica, não olha para o espelho. Não apalpa as palavras que proferem aos tímidos, aos simples. Não grava os contornos que envolvem os negócios. E nem querem, porque a razão diz-lhes que é melhor estar quieto, é melhor não dar argumentos a quem pode descobrir o cd e, mais tarde, usar a retórica para destruir a eloquência.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

FUTEBOL

O céu está cheio de nuvens; a rua, pequena e escura, convive com poucas pernas. Não é de estranhar, uma vez que na televisão está a dar o entretimento do povo: futebol. Para mim, as cabeçadas dos milionários não me dizem nada. Não alimentam o meu pensamento. Não me ajudam a sair da crise. Mas para a maioria dos meninos da cidade, os pontapés servem para esquecer os problemas e para insultar os senhores de preto.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

SIMPLES

a noite é uma porta para o diabo, porque a chuva e o vento ajudam-na a ser um monstro.