domingo, 30 de dezembro de 2012

NOVO ANO

A velhice tropeça e cai. Quando se levanta, o rosto assemelha-se com os rostos dos miúdos, que berram quando têm fome, que choram quando têm sono. Fica então histérica, pedindo aos anjos para a proteger daquele mistério. Mas os foguetes e os alaridos da cidade, que pintam a linha do horizonte com a cor da boémia, recordam-lhe que o ano velho deu lugar ao novo ano. E isso faz-lhe apaziguar os nervos, e isso retira-lhe um peso das costas, porque a razão diz-lhe que a esperança de ter uma vida melhor ressurge. (PS: para vós, quero que a esperança vos traga certezas. Bom Ano, camaradas do pensamento?)

sábado, 29 de dezembro de 2012

ASAS

Nos dias em que a chuva domina o dia apetece-me morder o algodão pardacento. Mas não tomo atitudes, porque a minha imaginação me impede de ter asas.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

PINÇA DA PACIÊNCIA

A pinça da paciência retira as impurezas do texto, que ao longo das noites me tira o sono e os sonhos. É certo que os olhos me ofuscam o olhar, mas é certo que a necessidade de fabricar uma voz me permite fugir das obrigações. Felizmente, dentro de mim, está a arma dos obstinados : persistência.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

PRESENTES

Sob a árvore estão sorrisos envolvidos com papel colorido. Mas as mãos dos meninos destapam-nos com veemência, porque o mistério cria-lhes aflição. Aos poucos, a sala enche-se de alegria estridente, enquanto o pai Natal bebe uma bebida quente.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

NATAL

Quatro beijos, três abraços, duas palavras: “Bom Natal”. Foram os gestos mais utilizados no jantar, que todos os anos decorre na tasca da tia Maria. A idade, associado à saudade, permitiu no entanto que as reminiscências aparecessem junto às bordas dos olhos com frequência. E isso obrigou-nos, para desespero da proprietária, a pedir muitos guardanapos. Mas a manhosa, habituada a estas coisas, trouxe-nos a conta, abrindo-nos a porta de madeira.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

SAUDADES

Depois do crepúsculo, o dia dá lugar à noite. E isso permite-me trazer da memória o nosso encontro, porque a tua alma subiu até às estrelas depois dos nossos beijos. Há três anos que olho para cima. Mas há três anos que não te encontro. Já não sei o que fazer. A minha mãe anda preocupada comigo. Acha que tenho alguma coisa na cabeça. Por isso é que trouxe um médico a casa para me analisar. Para a contrariar, não o deixei trabalhar, alegando uma saída urgente com o Vitorino. Na verdade fui até ao parque para chorar, onde o ladrão, de surpresa, te matou com uma faca. E para pedir a todos os santos que me trouxessem a mão do diabo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

CHUVA

A chuva é violenta; o vento de norte embrutece-a. Não é de estranhar que as fachadas percam algum revestimento. Mas os transeuntes que deambulam pelos passeios detestam tais acontecimentos, porque o beijo da cerâmica pode trazer o braço da morte.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

DESíGNIO

O homem tem as mãos brancas; tem o nariz roxo; tem os olhos ensanguentados. O frio, que se passeia pela tarde como se fosse um janota, é o causador daquele aparato, que faz do jovem um decrépito. Fico angustiado e sinto um aperto no estômago, por ver o futuro de Portugal a viver assim na rua. Mas a vontade aniquila-me com a inércia e pede-me para lhe gritar. Faço-lhe a vontade, depois de ter aquecido a sala com o calor dos meus desígnios.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

SUGESTÃO

Um amigo procura outro amigo.Sua trajetória: hotéis de luxo e bordéis, hospitais, jesuitas. Local: Índia. Ao texto da procura do amigo, Tabucchi escreve um subtexto no qual o leitor é remetido a outros escritores cujo imaginário escolhe o mesmo local: "A realidade passada é sempre menos má do que foi efetivamente: a memória é uma formidável falsária. Certas contaminações são feitas, mesmo sem querer. Hotéis assim povoam a nossa imaginação: já os encontramos nos livros de Conrad ou de Maugham, em algum filme americano extraído dos romances de Kipling ou de Bromfield: parecem-nos quase familiares." Estaria Tabucchi tentando afirmar que o texto qualquer que seja, já viria como que "contaminado" por outros textos? Que ao tentar criar algo, nos deparamos sempre com o já criado? Tabucchi leva o leitor consigo nessa busca, nesse universo em que a escrita faz do personagem o seu duplo.Um clima de sono desperto, uma procura sem respostas:"A substância é que nesse livro eu sou alguém que se perdeu na Índia... Há um outro que está me procurando, mas eu não tenho nenhuma intenção de me deixar encontrar." Ao leitor que espera surpresas, prossegue e pergunta, melhor seria fechar o livro e esperar que as respostas surjam depois do livro fechado - cumprida a narrativa, só nos resta imaginar.

SIMPLES

As casas que dançam no promontório gostam de olhar para o mar. Mas as janelas pardas escondem desgostos que obrigam os incautos a ter tristezas nos olhos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MEMÓRIA

Para se ter memória é preciso colocar os sentidos na direcção da coisa.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

TELEFONE

Quando o telefone toca, o dia transforma-se em noite e a cidade fica calada, como se alguém tivesse o poder de parar o tempo. Mas tudo se modifica quando não ouço a voz que tenho de ouvir.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

PENSAMENTOS GRISALHOS

Os dias agarram-se ao meu corpo para o envelhecer, como se fossem martelos a embater nas montanhas. Mas a minha mente sorri, porque nada lhe vai obrigar a ter pensamentos grisalhos.

domingo, 9 de dezembro de 2012

SUGESTÃO

De acordo com as palavras do autor, História Universal da Infâmia «São a irresponsável brincadeira de um tímido que não se animou a escrever contos e que se distraiu em fabricar e tergiversar (sem justificativa estética, vez ou outra) alheias histórias.» As narrativas reunidas neste livro foram executadas de 1933 a 1934, e, segundo o autor: «Derivam, creio, das minhas releituras de Stevenson e de Chesterton e também dos primeiros filmes de Von Sternberg e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego.»

sábado, 8 de dezembro de 2012

BEIJO DA NOITE

Saio do sonho para entrar na manhã fria de sábado. E saio da cama para fugir às sombras do quarto. Na sala, o vidro das janelas estão inundados pela humidade, que desenha uma curva dum rosto. Mas impeço-a de dar vida a um mistério porque o desconhecido é um beijo da noite.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

CANSAÇO

Estou cansado. E quase que não sinto o peso da manhã, que refresca os aromas da cidade e desperta os senhores dos galinheiros. Mas o trabalho, direccionado para o desenho dos espaços, diz-me que o repouso tem que ficar para depois.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

OBRIGADO

Caro poeta do betão, o mundo perdeu a tua voz. E irá perder a imagem do teu rosto quando a nossa memória ficar envelhecida. Mas o teu pensamento irá perdurar porque as curvas da tua obra ficarão expostas nos troncos das cidades.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

PARAÍSO

A casa está implantada na parte mais fria do terreno, embora a sombra cubra a totalidade do rectângulo. Na cota mais alta do monte, que fica atrás das telhas, os pinheiros, robustos e alongados, parecem mãos a amparar os tiros do sol. Mas no horizonte, onde as cabeças das árvores desenham uma comédia, só há vestígios de luz. Infelizmente, o paraíso está para além das minhas possibilidades.