Partir as unhas no trabalho, seja ele qual for, é algo que não assenta bem nos humanos ociosos, porque a estética das mãos, e depois a ligação com o resto do corpo, se dilui nos desgostos do feio. E se houver um asno que evidencie ao ar esse mafarrico defeito, pode começar a abandonar o perfume da vida.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
terça-feira, 29 de junho de 2010
O fogo e o esquecimento
Alguém abriu as portas do fogo, no promontório que comanda tudo. Infelizmente desconheço-lhe o rosto, o tronco e as pernas do desgraçado; infelizmente desconheço-lhe o sorriso e a tosse. Mas tentarei percorrer o mundo para o descobrir, porque este calor me submerge às vontades da inércia. E isso não é bom para as palavras acasalarem sentidos.
segunda-feira, 28 de junho de 2010
O esquecimento
sexta-feira, 25 de junho de 2010
Ler
Uma família indo-portuguesa. Um século de história. Quatro gerações que evocam 450 anos de aventura mítica, nos quais a Índia longínqua era portuguesa. Em pano de fundo, a partida, o acaso e a sorte de quem se vê constantemente obrigado a fazer as malas, o desenraizamento, a inquietação, o inesperado, a imprevisibilidade dos destinos que se cruzam. A imagem dada pelo título é elucidativa: uma casa em movimento. Uma beleza poética singular. Uma verdadeira revelação.
Raquel Ochoa, gradiva publicações
quinta-feira, 24 de junho de 2010
As brasas
As brasas aquecem o corpo das sardinhas, aconchegando-as no sorriso de deserto, cujo o nome não consigo soletrar, e iluminam a obscuridade da noite, repleta de prateleiras com luzes. Aos meus lados, um cardume de olhos verificam a cozedura dos alimentos e dois gatitos, de corpos arregaçados no ar, esperam a oportunidade de atacar os mortos esfolados.
Deixo descair o lábio para a felicidade, num gesto muito calmo, por sentir que vale a pena viver.
Deixo descair o lábio para a felicidade, num gesto muito calmo, por sentir que vale a pena viver.
quarta-feira, 23 de junho de 2010
O modernismo dos ricos e dos pobres
“Prefiro passar fome do que não vestir uma roupa eloquente, porque ao estômago ninguém o vê”, uma coquete de meia-idade, em pleno passeio da cidade, conversa com uma divorciada de rabo a farejar uma alma penada, “Oh filha, fazes muito bem. Se queres ter amigos, não tens outra alternativa”, “Com licença”, interrompo-as. Um pouco chateadas, a olharem-me de soslaio, alargam a distância dos cochichos. Passo por entre elas e afasto-me, “Olha que tipo mal vestido! Que falta de gosto!”, mas ainda as ouço a dizerem que não tenho amigos.
terça-feira, 22 de junho de 2010
“A esperança está no nosso esforço”
Os meus vizinhos do piso superior cantam os parabéns a um invisível. Fazem muito barulho para isso, o que não é costume tal desrespeito. Mas provavelmente a conquista foi grande, nestes tempos que nos sugam as esperanças. Encarquilho a admiração e reestruturo o pensamento por ouvi-los, com o Saramago a olhar-me da capa de uma revista. Pouco depois, uma erupção surge-me, “A esperança está no nosso esforço”.
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Digo-vos adeus
Não é de mortos nem de moribundos que este manto verde respira, mas sim de cabeças que dormem na algazarra da sua intimidade, com as árvores a dançarem naquela magote. Sempre na companhia dos pássaros que falam umas coisas esquisitas e complicadas, como se fossem muito íntimas, muito musculadas de privacidade. E dos miúdos a chutarem a sua agressividade esquelética numa bola quase a explodir. Mas o sismo não derrete o sossego dos deuses. E por isso, digo-vos adeus.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
Ler
Há a família Kozak que, na Ucrânia, tenta ultrapassar a ausência do pai emigrado no Brasil, para onde toda a família rumará. Mais tarde, num navio, na tentativa de um reencontro. Noutra cidade, noutro tempo mais futuro e talvez apocalíptico, existe Michael, estudante de cinema, que tímida [mas intensamente!] se apaixona por Nina.
São estas duas narrativas os fios condutores. Mas “Diálogos para o Fim do Mundo”, o novo livro de Joana Bertholo, está intersectado de outras estórias e detalhes. Como a capacidade de amar [mesmo em tempo de guerra], as inúmeras espécies extintas do planeta [e outras que ainda não estão], a ditadura das religiões e das suas igrejas “onde nem todos são bem-vindos”.
A escrita moderna deste romance marcado por intercepções, forwards e rewinds - como se, através de um telecomando, tentássemos ver de uma só vez vários filmes que passam em canais diferentes - pode parecer difícil durante os primeiros capítulos.
Mas ao entrarmos no olhar [cinematográfico?] e na melodia que se constrói capítulo a capítulo, tudo se conjuga. Porque apesar do tempo e do espaço que separa as personagens e as estórias, “segue tudo e todos juntos, num ajuntamento de opções flutuantes, uma espécie de arca”, como diz a contracapa do livro.
Apesar de jovem [nasceu em 1982] Joana Bertholo apresenta já um currículo extenso. Actualmente vive em Berlim, mas já fixou residência em diversos países europeus e também na Argentina, acumula prémios literários e outros, tem dois livros de ficção publicados [«Havia – Histórias de coisas que havia e de outras que vão havendo» e «Boa-Nova»] além do que foi agora editado e distinguido com o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho.
São estas duas narrativas os fios condutores. Mas “Diálogos para o Fim do Mundo”, o novo livro de Joana Bertholo, está intersectado de outras estórias e detalhes. Como a capacidade de amar [mesmo em tempo de guerra], as inúmeras espécies extintas do planeta [e outras que ainda não estão], a ditadura das religiões e das suas igrejas “onde nem todos são bem-vindos”.
A escrita moderna deste romance marcado por intercepções, forwards e rewinds - como se, através de um telecomando, tentássemos ver de uma só vez vários filmes que passam em canais diferentes - pode parecer difícil durante os primeiros capítulos.
Mas ao entrarmos no olhar [cinematográfico?] e na melodia que se constrói capítulo a capítulo, tudo se conjuga. Porque apesar do tempo e do espaço que separa as personagens e as estórias, “segue tudo e todos juntos, num ajuntamento de opções flutuantes, uma espécie de arca”, como diz a contracapa do livro.
Apesar de jovem [nasceu em 1982] Joana Bertholo apresenta já um currículo extenso. Actualmente vive em Berlim, mas já fixou residência em diversos países europeus e também na Argentina, acumula prémios literários e outros, tem dois livros de ficção publicados [«Havia – Histórias de coisas que havia e de outras que vão havendo» e «Boa-Nova»] além do que foi agora editado e distinguido com o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho.
entrevista à RDB, Joana Bertholo
quinta-feira, 17 de junho de 2010
As cruzes na relva
De quando em quando, levo infelizmente o meu corpo ao mármore, porque uma alma conhecida diz-me adeus, sem usar a voz. E quando me ajoelho perante as cruzes, afim de lhe entregar o último beijo, reparo nas diferenças de posses que as famílias têm ao seu dispor. Estremeço por as ver e sinto saudades do verde dos filmes Norte-americanos.
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Os fantasmas juvenis
Quando coloco os meus pés no asfalto, sinto a artéria do burgo a namorar o vento, porque alguns fantasmas da noite navegam pelos passeios em horas tardias. E o mundo, assim, não viverá com as barrigas encolhidas nas costelas nem com a saúde toda completa; e o mundo, assim, não terá esqueletos a pensar.
Meninos, que podereis amar as minhas palavras copiosas, as sopas e os exercícios físicos são os vossos alimentos e as nossas reformas.
terça-feira, 15 de junho de 2010
Até breve desconhecida
E o silêncio chega quando as pálpebras adormecem um sono eterno e quando o corpo se torna numa memória para os vivos. Com ele, o estremecimento dos sorrisos, que namoram os dias, provocam lágrimas de hipopótamo que nunca mais saram.
Hoje estou assim e estarei assim até que as minhas pálpebras me indiquem o caminho de volta.
Hoje estou assim e estarei assim até que as minhas pálpebras me indiquem o caminho de volta.
segunda-feira, 14 de junho de 2010
Corpos com guerras
O dia adormece e a noite acorda, tudo em simultâneo, numa harmonia perfeita. Ao meu lado direito, dois tipos jantam uma chouriça muito castanha. Cheira bem. É pena já ter jantado uns grelhados junto ao rio. Caso contrário afinfava-lhe o dente, como uma cobra esfomeada.
Sorrio pela comparação desapropriada e desloco o olhar, pouco depois, para a praça dos sorrisos, que é ladeada pelo Mosteiro da Santa Clara. E nela vejo um casal unido por um dissabor azedo, de olhos a mastigarem futilidades muito taciturnas. Abano os meus nervos com a cabeça esbranquiçada e grito-lhes, “Usem as palavras, porra”, e ela, muito a seco, “Mas eu detesto-o”, “Mas eu amo-te”, e as estrelas desaparecem.
Sorrio pela comparação desapropriada e desloco o olhar, pouco depois, para a praça dos sorrisos, que é ladeada pelo Mosteiro da Santa Clara. E nela vejo um casal unido por um dissabor azedo, de olhos a mastigarem futilidades muito taciturnas. Abano os meus nervos com a cabeça esbranquiçada e grito-lhes, “Usem as palavras, porra”, e ela, muito a seco, “Mas eu detesto-o”, “Mas eu amo-te”, e as estrelas desaparecem.
quarta-feira, 9 de junho de 2010
4000 Portugueses
O país vive para a crise e faz da crise a explicação de tudo, mesmo das insignificantes poeiras. Não passamos de ricos sonhadores e de pobres gastadores, numa era tão caótica. Por isso, não é de estranhar que cerca de 4000 portugueses irão para África do Sul, afim de poder gritar por uns tipos que darão uns pontapés numa bola.
Fora isso, está tudo bem.
Fora isso, está tudo bem.
terça-feira, 8 de junho de 2010
“A fábrica que produz malucos”
Janto num restaurante embrulhado em solidão. Não é habitual este agasalho nestas paredes, mas talvez a hora possa explicar quase tudo.
Ao meu lado direito, a beijar o tecto, um televisor dá imagens muito jovens, dentro de uma cidade fabricada por moles. Parecem cenas de uma telenovela à brasileira.
Volto a encolher-me para baixo e ergo a mão que escrevo para levar o arroz à boca. E a meio da viagem, uma ideia surge aos olhos do meu cérebro (como gosto destas palavras), como uma descoberta, “a fábrica que produz malucos”, e envergonho-me pelo exagero.
Volto a encolher-me para baixo e ergo a mão que escrevo para levar o arroz à boca. E a meio da viagem, uma ideia surge aos olhos do meu cérebro (como gosto destas palavras), como uma descoberta, “a fábrica que produz malucos”, e envergonho-me pelo exagero.
quarta-feira, 2 de junho de 2010
Sugestão para o Arejo
terça-feira, 1 de junho de 2010
O Sol e a Noite
Acordo. Olho para o deserto da noite e sinto-me preso num sufoco. Não gosto de comer essa fruta verde. Por isso, levanto-me com um impulso de atleta e procuro a luz como um mágico, porque o invisível é um nada que eu contorno facilmente. Talvez a minha experiência com as ruas do homem, calcorreadas até ao cansaço, obri...gue as janelas da solidão a mostrar-me as imagens vazias de amor.
Com a fatiota ainda a cheirar a novo, encolho os quadris numa esplanada de solitários, a comer com os olhos jornais com afirmações. Observo-os como se indagasse um movimento digno de registo. Mas o seu mundo é tão distante, tão perto das lágrimas, que não encontro mais do que desilusão.
De repente, do meu lado esquerdo, naquela escada coberta de anos, surgem neófitos a espernearem alegrias, que o céu pardacento dança uns sorrisos de sol assim que os vê.E no meio destas criaturas opostas, eu divido-me em dois, exactamente nas mesmas proporções, e sinto o mundo a cair-me em cima.
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