sexta-feira, 29 de junho de 2012

SUGESTÃO

Em 1937, Ernest Hemingway decidiu ir para Madrid, a fim de aí realizar algumas reportagens sobre a resistência do governo legítimo de Espanha ao avanço dos revoltosos fascistas. Três anos mais tarde, concluiria a elaboração do mais famoso romance sobre a guerra civil de Espanha, Por Quem os Sinos Dobram. A história de Robert Jordan, um jovem americano das Brigadas Internacionais, membro de uma unidade guerrilheira que combate algures numa zona montanhosa, é uma história de coragem e lealdade, de amor e derrota, que acabou por constituir um dos mais belos romances de guerra do século XX. «Se a função de um escritor é revelar a realidade», escreveria o editor Maxwell Perkins em carta dirigida a Hemingway após ter concluído a leitura do seu manuscrito, «nunca ninguém o fez melhor do que você.»

quarta-feira, 27 de junho de 2012

TELEFONE

O telefone atira para a sala um grito. É um barulho forte, rouco, que me faz estremecer, que me faz perceber que o silêncio é um engano, uma mentira, porque a sua essência altera-se conforme as necessidades ou apetites de qualquer coisa. Atendo. Do outro lado surge uma voz pacífica, um pouco filosófica quando as palavras voam na direcção da política. No meio da memória descubro que é o meu pai que fala. Sorrio, “Estás bem?”, “Nem por isso, filho. Mas é normal: a conjectura…”, “E a mãe?”, interrompo-lhe, “Está com saudades tuas, claro”, e as lágrimas saltam-me dos olhos como se imitassem a água das cascatas, como se fugissem da tristeza, “Também tenho saudades dela, e tuas”, e prometemos que no próximo sábado iremos abraçar os corpos com afinco.

terça-feira, 26 de junho de 2012

MESA

A mesa está deserta, embora alguns cotovelos intoxicam o branco com manchas de vinho. Os gatos, de caudas erguidas, miam e mordem as pernas adormecidas. Por vezes, com brusquidão, aparecem bofetadas que tocam e magoam os pobres bichos. Ao vê-los a saltar para a erva, as bocas dão casquinadas elevadas. Mas os meus olhos fazem tristezas que não existem nas histórias.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

S. JOÃO

Sobe, sobe, balão sobe, enquanto as sardinhas bronzeiam-se nas brasas. Os pimentos serão a seguir. A dança fica para o fim da digestão. Mas a música tem que estar sempre presente.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

VERÃO

a sombra do verão aproxima-se, mas a chuva dominará o dia de amanhã.

terça-feira, 19 de junho de 2012

DICIONÁRIO

Abro o dicionário. Dois rostos cheios de palavras mostram-me, ao acaso, um punhado de mortos. A culpa é das bocas. Das mãos. E dos dedos. Porque a comodidade do rotineiro permite fugir ao engano. Como se o erro fosse um monstro. Abano severamente a juba. Mas a folha de papel, que descansa ao pé do candeeiro, lembra-me que o prelúdio da mudança pode ser feita por mim. Paro e amedronto-a: “Dacoma”, enquanto retiro a esferográfica para longe.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

FOTOS

Saio da noite. Devagar, entro no quarto, onde o computador afugenta as sombras. Sento-me. A cadeira, de madeira, faz uns gemidos. Mas o bulício, estreito, fino, perde-se no silêncio da madrugada. Respiro. É um acto divertido, porque me permite brincar com a camisola. Suspiro, e deixo que as lágrimas escorram pelos vales quando as fotos dos defuntos pintam o ecrã da máquina.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

ASSALTO

abro a porta e saio do dilúvio com a convicção de que o inverno assaltou a primavera.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

SUGESTÃO

Tudo começa com um homem saindo de casa, armado, numa madrugada fria. Mas do que o move só saberemos quase no fim, por uma carta escrita de outro continente. Ou talvez nem aí. Parece, afinal, mais importante a história do doutor Augusto Mendes, o médico que o tratou quarenta anos antes, quando lho levaram ao consultório muito ferido. Ou do seu filho António, que fez duas comissões em África e conheceu a madrinha de guerra numa livraria. Ou mesmo do neto, Duarte, que um dia andou de bicicleta todo nu. Através de episódios aparentemente autónomos - e tendo como ponto de partida a Revolução de 1974 -, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial. Duarte, cuja infância se desenrola já sob os auspícios de Abril, cresce envolto nessas memórias alheias - muitas vezes traumáticas, muitas vezes obscuras - que formam uma espécie de trama onde um qualquer segredo se esconde. Dotado de enorme talento, pianista precoce e prodigioso, afigura-se como o elemento capaz de suscitar todas as esperanças. Mas terá a sua arte essa capacidade redentora, ou revelar-se-á, ela própria, lugar propício a novos e inesperados conflitos?

segunda-feira, 11 de junho de 2012

ESCURIDÃO

Do céu, vem uma luz enfraquecida. A culpa dessa tonalidade tão singela é das nuvens e do vento, porque trazem do inferno a mão da escuridão.

domingo, 10 de junho de 2012

NÃO HÁ PRIMAVERA

Não há sinais da primavera nas montanhas. Não há pássaros a sobrevoar as ruas. As praças. O campo de futebol. E as cabeças dos prédios. As pessoas, sem os suspiros que caracterizam os bem-aventurados, lançam palavrões ao nevoeiro, que chefia o trono do céu. Os miúdos, de narizes tortos, de olhos tristes, de bocas fechadas e de pensamentos duros, olham para o horizonte com ansiedade. Mas as terras longínquas não trazem a mudança desejada.

sábado, 9 de junho de 2012

SIMPLES

O que faz falta é agitar a malta.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

VINHO MENOS AZEDO

entro do café, as bandeiras do país estão estendidas nas mesas. Os funcionários, de olhos cobertos pelo cansaço, dão sorrisos para os clientes, que se alimentam em esperanças vitoriosas. Há quem salte esse imaginário e diga que a selecção vencerá todos os jogos. Mas os jornais pousados a um canto alertam que o desemprego subirá até às estrelas, onde os monstros triturarão a paciência dos infelizes. Como sempre, as mentes regam-se com o vinho menos azedo.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

SIMPLES

Se não dormes, podes ficar sem ideias claras.

terça-feira, 5 de junho de 2012

PASSADOS

As paredes da rua estão caladas. Mas por detrás das pinturas, dos pósteres de publicidade, estão vozes. São camadas esquecidas que voltam à superfície quando o artista usa martelos pneumáticos para esculpir um rosto enrugado, uma cicatriz no peito. Os cidadãos, no entanto, não fotografam essas preciosidades, porque as palavras e as imagens dos outros tempos são futilidades. Os afazeres do futuro, essas coisas que dão a ganhar o pão e a sopa, não lhes permitem descobrir que na quietude está a luz do conhecimento ou o princípio da tese, que levará o incauto a compreender o chão que pisa.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

SIMPLES

As pegadas indicam os caminhos dos outros.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

SOMBRAS

Saio da toca, onde os sonhos são o fruto do meu pensamento. O dia, repleto de sementes a boiar a dois passos da terra, é um assador que coze a carne exausta. Mas as sombras que saltam dos prédios dizem-me que a aflição não deve estar no topo da testa.