A chuva fustiga os prédios, que dormem ao lado dos sonhos, enquanto que o rectângulo negro suga as memórias dos rios, como se a morte nos sugasse as forças.
terça-feira, 30 de novembro de 2010
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Colaborador/a
“Precisa-se de colaborador/a. A entrevista é hoje”, ao lado do papel colado ao vidro, uma fila de olhos caídos seguram três folhinhas, “Já tenho estalactites no nariz”, sopra uma mulher, “E eu tenho os ossos congelados”, diz uma outra, “Podem ir embora, pessoal. Por hoje, terminamos”, vocifera o gerente entretanto, baloiçando as gorduras, “Vamos embora, tenho clientes para atender”.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Ler
"Quantas Madrugadas Tem a Noite" está destinado a ser um marco na literatura angolana e na literatura de língua portuguesa em geral. Com uma extraordinária mestria narrativa, Ondjaki conta aqui uma história em que não se sabe o que admirar mais, se a fulgurante imaginação do autor, se a sua capacidade para a criação de tipos e situações carregados de significado, se a sua capacidade para elevar a linguagem coloquial a um altíssimo nível literário. O humor, a farsa, o lirismo, a tragédia, o horror, todos estes sentimentos são aqui convocados e expostos, com a fluência de quem conta, simplesmente, uma história, na Luanda dos dias de hoje. Assim:
«Num tenho dinheiro, num vale a pena te baldar. Mas, epá, vamos só desequilibrar umas birras; sentas aí, nas calmas, eu te pago em estória, isso mesmo, uma pura estória daquelas com peso de antigamente, nada de invencionices de baixa categoria, estorietas, coisas dos artistas: pura verdade, só acontecimentos factuais mesmo. A vida não é um carnaval? Vou te mostrar alguns dançarinos, damos e damas, diabo e Deus, a maka da existência.
Transformo só o material pra lhe dar forma, utilidade. O artista molha as mãos pra trabalhar o destino do barro? Eu molho o coração no álcool pra fazer castelo das areias em cima das estórias...Uma noite, quantas madrugadas tem?»
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Desacordo de velocidades
O despertador martela-me no sonho até o partir. E quando ele tropeça na morte, abro as pálpebras chateadas, como se a noite não jantasse com as estrelas, “Maldito”, e atiro-lhe com um murro. Guincha uma dor, embatendo no candeeiro, enquanto atiro o corpo para dentro de umas vestes novas. Depois, com a elegância a namorar-me o corpo, voo para o encontro de negócios. Porém, quando me sento na mesa de magno, o silêncio dos bancos mostra-me o desacordo de velocidades, porque as duas da tarde batem no cuco do café.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
A dança do castanho
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Manifestação
Com os olhos inflamados de sono e com o cabelo a mordiscar a demência, abro a persiana do quarto. E quando a alvorada me barre o rosto com o creme do dia, vejo a praça abarrotada de cartazes e de vozes a declamarem exigências. Encarquilho a surpresa, vincando os vincos da idade, e sacudo o nevoeiro do olhar, “O roubo não pode continuar”, e vejo a frase a baloiçar sobre as cabeças aflitas, como se fossem lágrimas a brotarem da alma.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
O frio
O frio de domingo agasalhou-me os pensamentos dos trópicos, como se o mundo andasse ao contrário. Ainda tentei socorrer-me do extintor que se cola à lareira, mas nem um risco lhe fiz no dorso. Porém, o fervilhar dos ossos mostrou-me a vereda das palavras, que serviram para desbloquear a solidão do romance.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Ler
Furtado do espólio de Salazar aquando da invasão dos seus antigos aposentos no dia 25 de Abril de 1974, o manuscrito «As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia», escrito nos últimos anos de vida e doado pela própria à Casa de Bragança, em Lisboa, através da mão do chefe do Estado Novo, foi recuperado em Sófia, na Bulgária, na Comemoração do Centenário da República, por Miguel Real, que foi incumbido de o depositar na Torre do Tombo, já o tendo feito.
Neste manuscrito, a Rainha D. Amélia retrata a sua vida em doze pequenos capítulos, equivalente a um por cada mês do ano, organizados em quatro grandes partes, seguindo o ritmo das estações, da Primavera, na infância, ao Inverno triste da sua velhice. Um documento pungente, doloroso e comovente, fortemente crítico de Portugal e dos Portugueses, permanentemente iludidos pelas artimanhas de elites ineptas e ignorantes.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
A fórmula mágica
Com o nariz congelado, compro um mimo com recheio. Saio do estabelecimento comercial e caminho nas memórias da cidade, com o coração a dançar satisfações. Porém, numa rua perpendicular à praça, um casal de namorados esbofeteiam argumentos, “Tu não prestas, Zé. És uma nódoa”, “Mas, mas…”, “E nem adianta falares, porque não vais mudar a minha opinião”, passo por eles, “Usem o diálogo para resolverem os problemas”, e atiro-lhes com as costas, como se não fossem dignos de olharem para as minhas íris, “Tem razão, obrigado”, dizem-me em uníssono. Viro o rosto e pisco-lhes o olho.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Saber não ocupa lugar
Dentro da noite, o Hércules sopra eloquências do púlpito, como quem troveja afirmações irrefutáveis. Rasgo o rosto com admirações, brotando da fonte dos sentimentos umas lagrimazinhas satisfeitas, e dilato os ouvidos para a eloquência, “E assim termino a apresentação”, diz por fim. Descoso as mãos dos bolsos e aplaudo a coragem do meu pai em voltar a estudar.
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Falta de gosto
Cheiro as roupas num pronto-a-vestir da minha rua. Mas o meu rosto deforma-se com desgosto, porque os trapos não passam de Outubros pardacentos, “Precisa de ajuda?”, pergunta-me o mar com a suavidade perfeita, “Não, obrigado”, e move o corpo com narcisismo. Volto a olhar para o arco-íris, “Precisa de ajuda?”, ouço subitamente, “De paciência, isso sim”.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Junto ao adro
Junto ao adro, sento-me num banco de pedra. Estico a preguiça como quem ofende a educação, mas repouso logo o esqueleto na inércia, porque saltam da esquina corpos com roupa, a dançarem uma volúpia exagerada. Os morcegos que empanturram a praça, olham para a passerelle, com olhos pardacentos e atentos, “Olha que vadias”, murmura uma esquelética, “Olha que beatas”, cospe-lhe a modernidade.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Paraíso
Um passarinho de bico achatado amolga-me o ombro esquerdo do casaco. Olho para o desconhecido e sorrio uma satisfação, “Trago-te uma mensagem”, diz-me. Encarquilho a surpresa, vincando a velhice, “Tu falas?”, “Trago-te uma mensagem”, chapino os dedos na testa, “Mensagem?”, “Sim”, “E de quem?”, “Da tua saudade”, arregalo a emoção, como quem abraça um dilúvio, “E o que diz?”, “Ela ama-te”, e o mundo atira-me com flores.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Enfim
Quando os sonhos não me trazem prazer, o meu espasmo salta para o silêncio. Depois, com os olhos a piscar um descontentamento, retiro os cobertores do corpo e coloco as pantufas nos pés. Arreganho a preguiça, como se libertasse a letargia do esqueleto, e ergo-me para a verticalidade com veemência. E quando abraço o silêncio imaculado, empurro o corpo para a sala, “A noite faz-me cada festa!”, resmungo um murmuro, enquanto coloco o corpo na pele do sofá, “Assim não pode ser”.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Ler
Kenneth Trachtenberg, o narrador de Morrem mais de Mágoa, é um especialista em literatura russa que abandona Paris, a sua cidade natal, para ir ao encontro do tio.
Morrem mais de Mágoa tem o humor ágil da farsa francesa, mas são inseparáveis do seu enreedo tragicómico as análises engenhosas do autor sobre a vida moderna e o dilema de dois homens, cujos espíritos brilhantes não os salvam de Benn Crader, um botânico famoso. As muitas facetas da relação entre estas duas personagens inquietantes, irrequietas e excêntricas - ambas procurando no erotismo e num amor calmo, diverso das convulsões sexuais do século XX, resposta para a satisfação que os persegue - são o pretexto de uma narrativa cheia de humor e inteligência e sabedoria. Por que será que, quando surgem os problemas, as pessoas procuram em primeiro lugar o remédio sexual? Por que será que as pessoas inteligentes e dotadas se encontram invariavelmente atoladas numa miserável vida particular? Por que será que os sobredotados, os intuitivos, os que são capazes de ler no livro dos mistérios da Natureza, hão-de ser tão incautos e tolos?
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Os loucos
A chuva tropeça na calçada e os cães amarrotam as sombras dos cantos. No castelo de tijolos, mesmo defronte às vaidades dos cemitérios, dois homens encolhem-se no rés-do-chão, espreitando a medo as lufadas da tempestade, que fustigam a cidade há meses. Mas sem que nada fizesse prever, atiram as roupas para o cesto das cascas e colocam a natureza a baloiçar na praça despenteada, como se agarrassem a liberdade dos legisladores.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
As buzinadelas
Com os pés a nadarem na água quente, que enche a bacia de plástico, e com uma toalha a chupar-me o forno da testa, ouço as buzinadelas vitoriosas a varrerem o asfalto descontente, “Não se deve viver em função de um remate”, cuspo a afirmação. Entretanto, o meu prédio agita-se como as árvores em dias de tempestade, “Vitória, carago”, “Até os comemos”, que tem origem nos meus vizinhos do piso inferior, “Assim não nos salvaremos”, murmuro, enquanto que a luz artificial se esconde na noite.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
Ler
Recém-separado, Julio decide ocupar em segredo o andar vazio de um vizinho. Ao fazê-lo, irá gradualmente apropriar-se do universo do outro: das suas roupas, dos seus costumes, da sua visão do mundo, e da relação secreta que ele mantinha com a sua ex-mulher.Julio descobre uma nova vida, na qual a impostura se transforma numa nova consciência, que o fará encontrar a sua verdadeira identidade. •misto de estranheza e lucidez com que Julio vive a sua metamorfose, constitui o cerne desta história intensa e circular até ao mais ínfimo detalhe.
Em Laura e Julio, Millás retoma o registo narrativo do início da sua carreira, enriquecendo-o com o engenho e a surpresa das obras posteriores. Referência indiscutível do jornalismo literário e criador de novas formas de narrar, Millás é um dos mais notáveis romancistas espanhóis dos nossos tempo.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Alvorada
Antes de os galos acordarem com a alvorada, eu espreguiço o esqueleto sorridente sobre a cama desgrenhada. Mas quando a anarquia pousa no sossego, atiro o meu corpo desgrenhado para a varanda. E debruçado sobre ela, olho para o camaleão natural, que pinta a cidade com cores dos vivos, e alegro-me como se estivesse a baloiçar no paraíso.
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
Sobre as reminiscências
Com os olhos carregados de noite, a criatura das trevas calcorreia o dia como se fosse um prisioneiro. Porém, pouco depois, o desassossego imaculado embate na fragilidade de uma senhora de idade. Por causa do impacto agressivo, ela cai e estatela-se nas reminiscências do granito, sem a delicadeza pretendida, “Saia da frente, sua minhoca velha”, ela encarquilha o medo e sussurra-lhe, “Bruto”, a criatura incorpora a brutalidade, “Desapareça”, dá-lhe um pontapé, rouba-lhe o dinheiro da carteira e desaparece, com o corpo a passear na noite.
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Sinto-me frágil
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Gáudio
Por entre os mármores dos ricos e dos pobres, a magote pousa o olhar na fotografia desbotada, que abraça os ramos de flores de várias cores. No púlpito, entalado naquele promontório, o pároco lança palavras de esperança, como se o mundo não tivesse amanhã. Porém, alheio aos silêncios e aos paraísos, um indivíduo de tenra idade vocifera que nem o Diabo, exigindo a Deus que lhe devolva a sua mãe. Encarquilho o descontentamento e lanço-me para o corja, "Ele não te ouve, meu caro, porque estão todos no gáudio, a comemorar a nossa presença nas memórias".
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