segunda-feira, 14 de maio de 2012

SUGESTÃO

Às vezes, as traduções fazem com que os títulos deixem de ser fiéis ao que realmente significam. É esse o caso de "Gente de Dublin", do escritor irlandês James Joyce - "Dubliners", no original. É que "Gente de Dublin" é diferente (talvez substancialmente diferente) de "Dubliners". Se no primeiro se lê "conjunto de pessoas, gente que vive em Dublin", no segundo, contudo, lê-se caracteres-tipo, indivíduos feitos da mesma massa, do mesmo sangue. Há algo que os une e algo que os separa. Não são "apenas" homens e mulheres que vivem na capital irlandesa. Longe disso. São as mesmas origens, a mesma pobreza e o mesmo orgulho, os mesmos sonhos e desalentos. "Dubliners" é um conjunto de quinze contos e foi escrito por James Joyce por volta de 1905, quando o escritor estava em Trieste a leccionar - é o segundo livro do autor da obra-prima "Ulisses", e também de "Retrato do Artista Quando Jovem" ou "Finnegans Wake". "A minha intenção foi a de escrever um capítulo da história moral do meu país e escolhi Dublin como cenário porque a cidade me parecia o centro da paralisia. Tentei apresentá-la ao público em quatro aspectos: infância, adolescência, maturidade e vida pública", explicou Joyce. E é exactamente assim que o livro se apresenta. A "infância" é vista pelos olhos de crianças: um miúdo a quem morre o tutor ("Irmãs") ou rapazes que descobrem os prazeres ilegais da vida - livros proibidos e raparigas ("Um encontro"). A juventude ou a puberdade estão em "Eveline", a rapariga que olhava pela janela do quarto e que queria mudar de vida; em "Dois conquistadores", Corley e Lenehan, que se gabam das suas conquistas, ou em "A pensão", em que Polly e o sr. Doran se apaixonam sob o olhar reprovador da mãe desta. Em "Camaradas" está a maturidade deprimida de um empregado de escritório, como em "Uma nuvenzita" está a vida pública estraçalhada de Little Chandler - e "lágrimas de remorso começaram a brotar-lhe dos olhos". Em "Um caso doloroso" estão os primeiros prenúncios de uma velhice pintalgada de solidão, como em "O morto" está a crónica de uma morte anunciada. O que há, então, em "Dubliners"? Irlandeses ruivos bebem uísque de malte ao final da tarde; meninas de convento ajudam as mães na cozinha; putos reguilas jogam à bola do outro lado do rio; ruas e mais ruas, numa cidade que parece enorme e, ao mesmo tempo, minúscula, tal é a facilidade com que se sai de Temple Bar e já se está no Ringsend. Há também uma cidade suja e triste, vestíbulos quentes e apertados, cheiro a mofo, ácaros, vestidos de domingo, relógios de corda, álcool entornado em tampos de mesas. E há, sobretudo, um desalento - quem é esta gente, unida por um mesmo espaço, um mesmo tempo, a mesma classe? Parecem-se uns com os outros. Os anos vão passando, eles vão crescendo e, com eles, o desânimo, a infelicidade, a amargura acumulam-se como o papel nas paredes, as fotografias da família, a preto e branco, bolorentas. E o velho "dubliner" já não é o mesmo - está a envelhecer. Mas o rio continua, imponente, a correr para longe daquela ilha, da Irlanda, a correr, quem sabe para outra ilha, para Londres, quem sabe para o continente, Paris, Berlim, para longe do "ramerrão" de Dublin - para as "cidades imorais" com que sonha Little Chandler.

Sem comentários:

Enviar um comentário