domingo, 5 de junho de 2011

O VENTO COM DUAS FACES


A noite tropeça no dia e enche a cidade de ignorâncias. Aqui e ali surgem pontinhos artificiais, que incendeiam as torres metálicas ou as lojas quase despidas de artigos. Nos pisos que encaixam sobre esses dorsos moribundos, vivem velhos fantasmas, que pedem esmola na vivacidade anárquica da periferia, onde os preços rondam as migalhas e onde as portas de alguns equipamentos públicos abriram arraiais.
No fim deste extracto de cidade surge-me ao rosto e ao rosto das fachadas com solidão uma Praça com desenho. No centro desta, a estátua de um patriota organiza-a cuidadosamente, como se organizasse uma superfície artificial, porque a essência deste espaço está engavetada numa bibliografia de um génio. Ao pé dela estão alguns bancos de pedra.
Com o corpo refastelado nessa eloquência, olho para a composição abandonada e penso, “O que era antes um jardim de cabeças a dialogar sobre tudo não é agora mais do que uma memória asquerosa a mugir os últimos espasmos, como se as praças e as ruas fossem pequenos infernos”, enquanto abano negativamente a cabeça. Mas largo de súbito a reminiscência, pois a noite está fria e o sono carrega-me nas pálpebras.
Levanto-me e desço a vereda, que está iluminada pelas luzes do céu. Pouco depois surge-me ao olhar um rectângulo conhecido. Paro o ímpeto junto dele e retiro do bolso do casaco uma estranha chave. E com ela a mexer-se por entre os meus dedos, coloco-a na fechadura e rodo-a. Quase no mesmo instante, a porta move-se ligeiramente. Sorrio e empurro-a com violência.
Depois de vários pestanejos, a noite adormece no incerto. Para o seu lugar surge a alvorada, que é empurrada pelos senhores dos galinheiros. Na mesma proporção, coloco os pés no empedrado e vou até ao café da esquina, onde fazem umas torradas deliciosas. Como-as como um guloso e desapareço da solidão, que apenas conhece alguns forasteiros que insistem em namorar os desígnios da decadência.
Sobre a Praça da República, outrora sala de visitas da cidade, os esqueletos com dores agasalham-se nas sombras das árvores, “E a massa humana empanturra a tristeza, caros amigos”, “É verdade, Manel. Os sinos do trabalho exigem a presença dos trabalhadores”, e agarram-se ao saber empírico como ninguém, navegando por mares pouco navegados.
Mas o princípio da noite volta a cravar as garras nas costas do dia. E por causa disso, a luz que ofuscou a cidade perde a intensidade da adolescência, como se a obrigasse a transformar-se lentamente num deserto sem cheiro, num rio sem peixes, “Adeus, caros concidadãos do silêncio. Tenho que pensar em razões sobre a Renovação Urbana e Memórias Históricas”, “Não te esqueças de nós, homem”, “Não me esquecerei de ninguém”, sorrio e despeço-me dos meninos com a pele engelhada.
Momentos depois, entro no meu conforto, que mais parece um refúgio de livros. Vou até à varanda, que fica a três pisos de altura do empedrado, e respiro o chilrear das bolas de penas. Ao longe, pregadas no horizonte, grandes torres iluminadas buscam o infinito. No meio delas, largas filas de máquinas com botões contagiam os nervos com desassossegos. Aqui, no centro das memórias, as luzes são meras obrigações sociais, pois não passam de simples desperdícios, pois não passam de simples bolas que enfeitam as fachadas ou o ar decadente (...)

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