sexta-feira, 22 de outubro de 2010

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A cidade foi crescendo para as margens e os blocos de vidro e betão ceifaram as moradias e os quintais dos arrabaldes. A casa do narrador - casulo protector cheio de passado - é, na verdade, a única que resiste, mas está irremediavelmente condenada à extinção.

Enquanto recebe a visita da agente imobiliária que se ocupará da venda, este homem adulto e sozinho recorda o que foi a sua vida nesse refúgio - a superprotecção das mulheres, o carácter fantasista e megalómano do pai, a relação simbiótica com a irmã, as atitudes intempestivas do tio mulherengo mutilado na guerra colonial que ensaiou o próprio velório aos vinte anos, a loucura do professor que lhe dava lições particulares.

Nenhuma das suas figuras de referência o preparou para a emancipação - todas, pelo contrário, o incompatibilizaram com a vida comum. E, porém, Vergílio não está só no seu destino, porque a recapitulação dos dramas vividos pela sua família de geração em geração é, afinal, o eco do drama colectivo da Humanidade - e, ao mesmo tempo, um abrigo espiritual que substituirá a casa que está prestes a abandonar.

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