quarta-feira, 3 de março de 2010

Romance que escrevo e que ainda não tem título - parte V


Já a noite levanta-se do repouso, estremunhada pelo dia mal dormido, quando introduzo a chave na fechadura do meu apartamento, com o coração a pulsar na boca. Rodo a maçaneta da porta e empurro-a devagar, num gesto simples e mecânico, destapando os primeiros objectos do meu lar, sob o olhar atento e terno do meu companheiro, sentado na inseparável poltrona, ao lado do luxuoso e ornamentado candeeiro de pé, que jorra luz ténue para o espaço minúsculo e acolhedor da sala. Imobilizo, retraio-me, envolto na perplexidade das incertezas, assim que o vejo ligado, pois tenho a convicção de o ter desligado. E inundado de dúvidas, procuro respostas, nos objectos plácidos, deambulando o olhar. Pouco depois, com elas, reformulo a minha convicção, a minha certeza, desprendendo-me do medo, do receio que me bloqueou os músculos, e volto ao gesto simples e mecânico, destapando mais objectos. Nesse mesmo instante, uma voz firme, forte e rouca, eleva-se. “Boa noite, meu velho, são horas?”. Estremeço pelo imprevisto e, por causa dele, embato na ombreira da porta, com alguma violência. “Não tenhas medo, sou eu”, repetiu a voz. Aturdido e, no meio do embaraço, reconheço o som. “Ah, és tu. Podias ter avisado, quase me matas de susto”. “Até não seria má ideia, pois não? Mas pensando melhor, é preferível ver-te espernear pelos cantos.” No meio dos sorrisos da personagem, recomponho a postura, a atitude medíocre do imprevisto, e entro, mergulhado em suores; num gesto firme, preciso, fecho a porta bruscamente com determinação e empenho. “Entrarás em despesas se continuares a insistir na força. Quem te avisa teu amigo é”, “Para amizade, é necessário músculo e vontade”, “Desfaço-me em gargalhadas se continuares. A idade deveria fortificar a tua maturidade. Não entendes que a amizade é uma urgência para quem aspira a algo? Tudo o resto, são meros pontinhos de cumprimento.”, “A mediocridade mental foi sempre o teu ponto forte”, remato com violência, enquanto me aproximo da poltrona real do meu camarada. Ao pé do púlpito, num gesto afável e delicado, embrulho a alteza com as minhas mãos e afago-lhe calmamente o dorso. Exulta o efémero com o lento espernear de patas, com os olhinhos fechados, numa melancolia extrema. Diverti-mo a contemplá-lo. “As minhas conquistas falam por si, são a resposta inequívoca do meu empenho…”, “Tens uma arma e usas contra o corpo de anónimos a teu belo prazer, sem te preocupares com os danos provocados, isso sim”, interrompo-o, “A que arma te referes, meu velho?”, “Os teus afeiçoados, essa corja nojenta. Não és capaz de seguir um rumo honesto, com transparência, longe das habilidades dos amigos”, e dito isto, solta-se uma lágrima, uma pequena e lívida lágrima de dor, de angústia, que escorrega lentamente pelo rosto, contornando todos os ângulos necessários, e solta-se uma lágrima cremada pela desilusão. Desprende-se um pudor arrogante, uma imaturidade exagerada pela lágrima derramada, incontrolável, exageradamente incontrolável, e sento-me na poltrona de veludo para o derrubar, experimentando o sentimento soberano do cadeirão, depois de colocar a bola de pelo no chão. Daí, confortavelmente instalado, ouço o silêncio a sobrevoar o compartimento; as palavras contidas, presas, fixas à laringe e nenhum pensamento, nenhuma ideia surge. E o vácuo cobre-me literalmente, abraça-me por infinitos segundos, por instantes, que parecem eternos, longos, como a noite de uma insónia, como a noite de um pesadelo; e o vácuo envolve-me até à imobilidade profunda do meu olhar a um ponto indefinido, por causa do nevoeiro pardacento. E ouço o silêncio a sobrevoar as duas cabeças efervescentes, presas a corpos estáticos, hirtos, agarrados, cada vez mais agarrados, às sombras elásticas dos moribundos. Mas a luz, aquela luz, a luz dos sorrisos e do pulsar saudável do coração irrompe, invade-nos como um beijo ternurento, com o silêncio a ser quebrado pela criatura maléfica, ao colocar-se de pé, numa agilidade fascinante. De costas voltadas, com o vasto cabelo ainda a deslizar até aos ombros, próximo da lareira metálica e ferrugenta, mascarado numas vestes negras e arrepiantes, fixa o quadro defronte: uma maravilhosa praia coberta pelo cinzento da tempestade que se aproxima. “Tenho direito a várias coisas e tu sabes. Espero poder recebe-las em breve. O temporal virá se demorar”, altivo, liberta vagarosamente as palavras, numa calma incaracterística. Amedronto-me e tremo com o impacto do frio, do conteúdo gélido desferido por aquela boca imunda, repugnante, incorporada em cremes hidratantes, em rímel e sombras escuras, incorporada num corpo desfigurado pelas tatuagens e pelos percings que afiguram caveiras e bandas de música. E eu amedrontado, amedrontado como se a morte me tivesse tocado levemente no ombro e sussurrado ao ouvido palavras que exigiam a minha presença, e eu amedrontado por causa da exortação, da advertência do terrorista, e eu amedrontado por não ter alternativas, por não ter escolhas: sem um talvez ou quem sabe por este trilho a coisa resolvia-se, e eu amedrontado, apavorado, estremecendo em solavancos fortes e horrorosos, e eu amedrontado, aterrado, espetado no meu canapé a sofrer. E o meu companheiro, pressentindo que um tormento me consome, me suga a alegria e a boa disposição, salta para o meu regaço de pelo eriçado, miando, miando cada vez mais alto, mais alto, atingindo níveis ensurdecedores, de olhinhos arregalados, furiosos, abatidos por me ver nesta frágil condição, com as unhas desdobradas, prontas a combater e a desfazer a minha tortura: essa maldita pedra enfiada no meu sapato. Sorrio levemente pela coragem de colocar o corpo à disposição das balas sem colete protector; sorrio pelo gesto simples de um amigo eterno, mas incapaz de me proteger contra o canalha que me ameaça e se depara ali, a poucos metros de distância, separados por um espirro mais forte, a mover-se na direcção da porta do adeus, de sorriso estampado no rosto. Junto dela, coloca a mão na maçaneta e, num gesto sereno, abre-a na totalidade. De costas voltadas, com a mão esquerda colocada na ombreira e a mão direita desaparecida nas vestes, “Estamos conversados, meu velho”, atira-me com brutalidade e desaparece. Cruzo os braços contra o meu peito, descaio a cabeça, fecho os olhos e afogo-me, e sufoco-me em complexos soluços e em desesperadas lágrimas. Pouco depois, com o corpo dorido, cansado, enclausurado na nostalgia fétida, banhado em dor, desespero, irritação, abandono o meu corpo e nado para os sonhos soalheiros, paradisíacos, afastados do beijo do diabo.
sujeito a mudanças

2 comentários:

  1. convite para seguir a história de Alice , lá no --- continuando assim --- ainda vai no princípio :) espero que gostes

    bj
    teresa

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