terça-feira, 10 de abril de 2012

RUA


No meio da azáfama dos transeuntes, que bufam palavras incultas e gesticulam verdades imaculadas para os telemóveis, sinto os efeitos do calor. De olhos esbugalhados, limpo a testa e tiro o casaco. Depois arregaço as mangas da camisa até aos cotovelos e movo-me. Quero fugir deste sítio. Ao pé do sinal que me obriga a parar vejo os automobilistas a correr. Parecem meteoritos apressados. Mas a bolinha vermelha diz aos atrasados para estacionar as máquinas em frente às riscas brancas, onde as multidões aproveitam para se cruzar. Movo-me. Sou o único a fazê-lo com lentidão. Perto do passeio oposto, as minhas mãos perdem o casaco. Para o salvar das solas que pisam o chão com negligência, dobro os joelhos e movo os braços. Mas abandono a ideia quando vejo as rodas dos carros a sair da inércia. Colado ao poste, que no cume tem três regras distintas, escondo o nervosismo atrás dos punhos e espreito o pobre casaco. Do outro lado, as vozes continuam a gritar para os telemóveis; os olhos, cravejados de brilhos, colocam calmamente o olhar na carnificina. Uma repulsa, por causa dessa coscuvilhice atrevida, por causa desse atrevimento inesperado, apodera-se da minha traqueia. A voz, no entanto, permanece inexpressiva e isso é algo que me agrada, porque se ela exprimisse o amor que sinto pelo casaco as multidões achariam que sou um pateta ou um velho sem juízo. Entretanto, os automóveis param. Tiro da cabeça a indecisão, essa coisa que me faz pensar que não tenho certezas, e olho para os olhares que se afastam do casaco e olho para as pernas que se movem. O objecto, que foi uma prenda de anos da minha falecida mulher, é de novo esmigalhado. As mangas, como não resistiram aos choques, são agora dois balões que voam por entre as pernas dos desconhecidos. Faço dilúvios nos olhos e reforço os regos do rosto, mas digo adeus à memória quando me sinto a sufocar.

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