segunda-feira, 3 de maio de 2010

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À luz da memória, a infância é quase sempre um lugar escorregadio, onde se regressa tanto para os momentos idílicos (e tantas vezes idealizados) como para os episódios definitivos, depois dos quais nada voltou a ser igual. Nas três partes que compõem A Origem da Tristeza, Pablo Ramos conduz um narrador na sua recordação de episódios desse período e o texto que daí resulta tem tanto de ternura como de violência, numa escrita que seduz pelo humor e pelo olhar encantado sobre a infância, mas que conquista verdadeiramente pelo modo cru como assume esse estádio da vida como semente de todas as melancolias e de muitos desencantos.
Os três períodos escolhidos por Gabriel, o narrador, para recordar a sua infância correspondem a sequências de acontecimentos que provocaram, de algum modo, embates significativos com a morte. Apenas no último esse embate é directo, mas em todos há a assunção da morte como inevitabilidade, o que só ilusoriamente é um tema afastado da infância. Na escrita de Ramos não há lugar para a visão pura e paradisíaca (e portanto, insossa) da infância, e é isso que confere força e abissalidade a esta narrativa. O lugar das brincadeiras não é necessariamente o da inocência, mas mais o da descoberta; do outro lado pode estar a ilha dos piratas e a floresta dos duendes, mas igualmente a certeza do tempo, tão capaz de desvendar os primeiros prazeres da carne como de lhe confirmar a inevitável corrupção.

Sara Figueiredo Costa

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