quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Romance que escrevo e que ainda não tem título - parte IV


(Continuação)

apressadamente, aproveitando os últimos segundos da prioridade escondida, para voarem a um limite desconhecido, e os animais citadinos, essa casta domesticada, alheios, de pescoço inclinado, direccionam o olhar para o chão e procuram migalhas, partículas, fragmentos vitais para a sobrevivência, e tudo está alheio, preso, excessivamente preso, amarrados aos movimentos sistemáticos do quotidiano, como se tivessem atados a um sufoco eterno, como se tivessem intimamente ligados a um caminho fúnebre e recto, e tudo está alheio, pensativo, organizando ideias, estratégias, trilhos, com intuito de se aproximarem das metas previamente estipuladas, e tudo está alheio, assim, às metamorfoses ocorridas na cidade pelos tentáculos eruditos do sol, que pintam-na assombrosamente com cores fortes, intensas, belas, e tudo está alheio a este quadro, a esta paisagem deslumbrante, mas que me faz brilhar os olhos, que me faz sorrir e pensar que as pequenas insignificâncias, mesmo demorando um suspiro, são a essência da felicidade. Tudo está alheio ao mel dos nadas, tudo está alheio, mas eu nunca estou. Os motivos, para o facto, poderão ser diversos se esmiuçássemos o assunto, mas, epidermicamente, a causa está inserida no prazer do momento, na necessidade de sentir constantemente o aconchego da diferença, a um qualquer pormenor, a uma qualquer mesquinhez do quotidiano, a causa encontra-se na novidade, escondida nas profundezas das trevas, da descoberta esplendorosa de um nova forma de ver o ritual desse detalhe, a causa surge na inovação, palavra que transpira incertezas e que me prende ao gozo da descoberta, a causa está neste abraço simples e eterno do distante, a causa surge na distância entre a utopia e o seu desaparecimento. E tudo está alheio.
Assim que me desprendo do momento, vivido infelizmente num trago, numa rapidez desmedida e fugaz, volto a colocar a máscara moribunda no rosto, salientando as dificuldades dos anos, e obrigo-me a arrastar pelas ruas ortogonais, pavimentadas com materiais gastos por incontáveis recordações, como uma memória cheia de doutrinas, baseada em convicções, que cimentam a eloquência e a identidade do povo – esses adjectivos tão mimados e tão protegidos pelas vozes de defesa. E arrasto-me, arrasto-me lentamente pelos corredores infinitos pintados com cores vivas, frescas, saudáveis, cores de primavera, e arrasto-me pelos corredores rejuvenescidos de fauna e flora, e arrasto-me pelos corredores resplandecentes, normalmente anormais no resto do ano, e arrasto-me, arrasto-me até ao término de um corredor, apenas um, o tal que faz a ponte entre o construído e o selvagem, entre o inferno e o inimaginável, onde o limite é o impensável. E arrasto-me até aos braços da sucessão de curvas em declive, salpicadas por majestosas árvores, de cores e silhuetas diversas, e de sumptuosas flores, trespassadas por percursos em pedra tosca, que cruzam-se, aqui e ali, por mirantes, por pequenas praças de repouso, direccionados para uma lasca, uma pequena parte da cidade mais a poente, que está inundada por recortes, provocados pelos arranha-céus, ladeados por um singelo rio à deriva, e arrasto-me até ao silêncio imaculado do maravilhoso jardim.

(Continuação)

Sujeito a Mudança

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