quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Romance que escrevo e que ainda não tem título - parte II


(Continuação)

O silêncio bebido cegamente proporciona a envolvência com o desconhecido, e não é de estranhar, portanto, que o ressoar dos sinos da igreja, a uma distância de um infinito, me patenteiem com um horário estranho. Encorrilho a pele da minha face, com um movimento simétrico do rosto, e murmuro um “bolas”, pelo facto de apenas um devaneio ser percorrido desta forma. No meio desta rouquidão temporal, desta assimetria vivencial, um rosnar do estômago eleva-se, exigindo atenção. Deixo descair um sorriso. A noite vai alta.
Preso a tradições envelhecidas, longe da aceitação da modernidade, mastigo calmamente na cozinha umas uvas suculentas, envolvido por um ambiente tépido e amarelecido, pelo raiar das velas colocadas num canto da mesa. No outro canto oposto, perto do meu braço, o gato siamês espreguiça-se, abrindo desmedidamente a pequenina boca. Faço-lhe umas festas nas costas e na barriga, mas não reage. “Está mesmo cansado”, murmuro. Não é de estranhar, o dia foi cheio de acrobacias no meu grémio.
Cravadas à longevidade do corpo, as pernas torturam-me quando solicitadas, enviando-me guinadas dolorosas a cada passo, a cada gesto, a cada tentativa de movimento, que perduram interminavelmente. Gostava, assim, de poder voar para não enfraquecer, para não sentir a força da idade. A idade, essa inimiga dos bons ventos. Desta forma, arrasto-me, arrasto-me até ao aconchego de um sonho impreciso, enrolado por cobertores coloridos e frescos, muito perto da hora do cacarejar.Por motivos compreensíveis e sensatos, já com o sol bem elevado, acordo com a cara enterrada na almofada inundada de líquidos viscosos saídos da minha boca. Ao lado, o gato siamês a lambê-los pausadamente, todo descontraído, com o pequeno rabo a abanar para um lado e para o outro, na provável convicção que a sua sede findaria. Abano a cabeça, reprovando a atitude do malandro, e sopro-lhe, com força, na direcção do focinho. Sacode-se, fecha os olhos e, após umas traquinices, na tentativa de fugir ao

(Continuação)

Sujeito a mudanças

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