domingo, 22 de janeiro de 2012

REFORMAS


LEMBRA-TE,
Para lá das paredes deste quarto, na vasta noite do mar, existe uma ilha. É um lugar seguro para os barcos e para as lágrimas da alma. Hoje, todavia, estou seco como uma folha que se baloiça na pensão do Outono.
Saio. Fecho a porta e atravesso a solidão. Dentro da sala de estar, as emoções são cartões-de-visita. Ao pé da cascata, que é um tipo bojudo, daqueles que arrebentam camas sem reforços nas ilhargas, sento-me e peço um café, “Acha que sobrevivo com trezentos euros de reforma?”, e a voz sai-lhe. Parece um isco a procurar um conforto, “Nem com ginástica…”, “O fígado leva-me um terço e a sinusite outro tanto. O restante é para a sopa”, “A sopa não pode ter muita cenoura, pois não?”, tento arrastá-lo para outras margens, “Lá, lá, lá, lá. O senhor é um castiço”, “Leio muita comédia”, “Se isso faz bem, preciso que me receite uma tonelada”, subitamente, um homem dá um grito. Nem os trovões berram assim, “A reforma não me dá para os gastos! O que vai ser de mim?!”, “Mais um!”, “Coitadinho!”, “Peça à morte que se apresse!”, “Coitadinho!”, “Acham que dez mil euros dão para sobreviver?”, e o silêncio agarra-se às bocas.
Lá fora, nas ruas e nos largos, uma luminosidade diáfana coalha, suavemente, nas mãos antigas das mulheres. Vou para o pé delas. Gosto de as ouvir, porque as cicatrizes do cansaço contam estórias de cavaleiros que empurraram montanhas e me ensinam que a felicidade plena conquista-se com a força dos braços.
Quando a madrugada serpenteia a ilha, cubro o bojudo e peço ao vento que lhe traga uma estrela com dinheiro.

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