quinta-feira, 30 de junho de 2011

O SOL QUE PONTAPEIA


A tempestade de beijos morde o ignoto, que é um velho sem dentes, “És lindo pai. Não há ninguém no mundo como tu”, “Tenho o corpo que nem uma casca de árvore, rapaz”, “A beleza não está nas rugas”, a montanha ergue os braços para o céu, “Para mim, o paraíso descobre-se no motor com sentimentos. Como o teu respira amabilidades imaculadas, és perfeito”, o maduro cospe uns sorrisos, “Perfeito mas com defeitos”, “Quem não os tem?”, um rapaz com dedos pintados à maluco invade subitamente a sala de espera do hospital, “O meu velho é um tinhoso! Devia engasgar-se com o ódio”, “No momento seguinte irás chorar a perda, rapaz. Seja qual for a causa do desacato, as mãos devem estar sempre entrelaçadas”, o esquisito pára o ímpeto e pousa as mãos na anca, “Não peças ao divino a morte, porque quem te deu a vida merece apenas mimos desmesurados”, “Mas, mas…”, “Deixa a saliva com diabo no balde dos tubarões, rapaz”, e o choro troveja dentro das paredes, “Gosto tanto do meu papá!”, “Ainda bem!”, mas o sol pontapeia as nuvens injectadas de veneno.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

GARGALHADAS


A felicidade circula no ar, porque as gargalhadas dos transeuntes empastam a nuvem anárquica. Porém, um homem carrancudo, de barbas que se esticam até aos pés, sacode à paulada a onda positiva, “Não te vejo os dentes, meu!”, “Retira a infelicidade da boca”, “A vida é curta para te amarrares à escuridão”, dizem-lhe os desconhecidos. Com o mar a salpicar os fundos, o homem pára e limpa a testa com um lenço branco, “O que tens, homem?”, uma mulher, de corpo volumoso, pergunta-lhe suavemente, “Não me sinto bem”, “Seja qual for o motivo, não deves permitir que ele se apodere dos teus gestos”, “Achas?”, “Claro que acho”, e alarga muito os olhos, abanando os braços como uma louca, “Tens que lhe cortar o fogo”, “Como faço isso?”, “Abraça-me”, pouco depois, o bulício das gargalhadas é ensurdecedor.

terça-feira, 28 de junho de 2011

RISCO BRANCO


Os sentimentos estão no forno do inferno, porque nesta terra dos mortos vivos não posso levar a chave do sol. Mas o esqueleto amedrontado rasga o silêncio do burgo, como se o meu corpo fosse a lei suprema. Na fronteira entre o construído e as mãos da floresta, descansa uma pequena praça. Dentro dela, duas criaturas sem olhos resmungam afirmações, “Acredita, o gajo abandonou o berço com meninos”, “A sério?”, “É verdade. O tipo saliva amor para o ventre e depois desaparece. Nem mais nem menos”, “Meu Deus, morte ao gajo! E a desnutrida?”, “Chora que nem uma louca”, “Pudera”, “Quem me dera que um raio cuspisse insónias para o tratante”, ao fundo, junto à linha do adeus, um risco branco cai do céu.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

FANTÁSTICO


« Um livro magnífico, um dos melhores que li desde há muito tempo.» Mario Vargas Llosa Prémio Llibreter 2001 – Prémio Cidade de Barcelona – Prémio da Crítica do Chile Prémio Salambó – Prémio Qué Leer – Prémio Extremadura Quando, nos últimos meses da Guerra Civil espanhola, as tropas republicanas retiram em direcção à fronteira francesa, a caminho do exílio, alguém toma a decisão de fuzilar um grupo de presos franquistas. Entre eles, encontra-se Rafael Sánchez Mazas, fundador e ideólogo da Falange, talvez um dos responsáveis directos por esse conflito fratricida. Mas Sánchez Mazas não só consegue escapar a esse fuzilamento colectivo, como depois, quando o procuram, é encurralado por um miliciano anónimo que inexplicavelmente lhe perdoa a vida. Viverá então emboscado, protegido por um grupo de camponeses da região, e recordará para sempre aquele miliciano de olhar estranho que, no momento fatal, não o denunciou. O narrador desta aventura de guerra é um jovem jornalista que se propõe reconstruir o relato real dos factos ocorridos e descobrir o segredo dos seus enigmáticos protagonistas. Mas que acabará confrontado com realidades bem diferentes das que seria lógico esperar… Com cerca de 250.000 exemplares já vendidos em Espanha, traduzido em onze países, cumulado de prémios literários, Soldados de Salamina é um daqueles romances que nos levam a acreditar na Literatura. Dele disse Mario Vargas Llosa: « O livro é magnífico, um dos melhores que li desde há muito tempo.»

sábado, 25 de junho de 2011

SIMPLES

As pessoas deste universo preferem ter do que ser.

CALOR

Coloquei a mão esquerda ao sol e a tipa assou. Nem a sinto. Puxa, que loucura!

sexta-feira, 24 de junho de 2011

LOUCA

A ponte mexia-se como uma louca. Parecia que ela queria fugir do local. Pudera, aquele mar de gente assustava.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

S. JOÃO


Os festejos de S. João na cidade do Porto são já seculares e a origem desta tradição cristã remonta mesmo a tempos milenares. Mas foi só no século XX que o 24 de Junho passou a ser feriado municipal na Invicta, proporcionando um merecido dia de folia a milhares de tripeiros. E tudo graças a um decreto republicano e a um referendo aos portuenses, promovido pelo Jornal de Notícias. A história é curiosa e mostra o protagonismo que, já na altura, a Comunicação Social tinha no modus vivendi urbano. Estávamos em Janeiro de 1911 e a República Portuguesa dava os primeiros passos. A monarquia tinha sido destronada apenas três meses antes, com a revolução de 5 de Outubro de 1910. O Governo Provisório da República assumia a governação do país e, desde logo, começava a introduzir mudanças na sociedade portuguesa que espelhavam, muito naturalmente, os ideais da nova ordem republicana. Numa tentativa de implementar a nova ordem junto da população, o Governo Provisório redefiniu os dias feriados em Portugal. Por decreto, a República instituiu como feriados nacionais o 31 de Janeiro (primeira tentativa - falhada - de revolução republicana, em 1891, no Porto), o 5 de Outubro (instauração da República) e o 1º de Dezembro (restauração da independência em 1640), para além do Natal e do Ano Novo. Mas o mesmo decreto impunha, a cada município do país, a escolha de um dia feriado próprio: "As câmaras ou commissões municipaes e entidades que exercem commissões de administração municipal, proporão um dia em cada anno para ser considerado feriado, dentro da area dos respectivos concelhos ou circumscripções, escolhendo-os d'entre os que representem factos tradicionaes e característicos do município ou circumscripção". E foi com este propósito que a Comissão Administrativa do Município do Porto reuniu a 19 de Janeiro de 1911. Segundo o relato do Jornal de Notícias, o "velho e conceituado republicano, sr. Henrique Pereira d'Oliveira" logo sugeriu a data de 24 de Junho para feriado municipal. O facto não causa espanto. Afinal de contas, o S. João era, já na altura, uma festa com longa tradição na cidade do Porto. A primeira alusão aos festejos populares data já do século XIV, pela mão do famoso cronista do reino, Fernão Lopes. Em 1851, os jornais relatavam a presença de cerca de 25 mil pessoas nos festejos sanjoaninos entre os Clérigos e a Rua de Santo António e, em 1910, um concurso hípico integrado nos festejos motivou a presença do infante D. Afonso, tio do rei (a revolução republicana apenas se daria em Outubro).

quarta-feira, 22 de junho de 2011

PRAÇA DOS NEGÓCIOS


Com os pés na terra dos elefantes, respiro a brutalidade dos movimentos, “Encarece o preço, meu. O gajo é podre de rico”, “E tem a mania que é doutor”, “É doutor da treta, isso sim”, o homem das roupas largas esfrega o nariz e penteia a careca, “Dá-lhe uma machadada. Aproveita-te do pacóvio”, “Tens razão”, vinca o rosto e aproxima-se das orelhas do franzino, “Vou ajudar-te. Mas para isso, os meus bolsos precisam…sabes como é!”, abanando com fulgor a cara do mundo, “Não te preocupes. Quanto a isso não haverá problema”, apertam a mão e desaparecem da praça dos negócios.

terça-feira, 21 de junho de 2011

SEGREDO


Tiro da cara as lágrimas com sono e empurro a janela da sala. Ao fundo, por cima das cabeças dos prédios, o sol mordisca as telhas, “Faz isso com jeitinho, rapaz. Elas não gostam de brutalidades”, e sorrio como os ócios na esplanada.

VERÃO


Hoje é o primeiro dia de verão. ;)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

UM GESTO


A areia olha para a montanha de água, que engole o céu na linha do infinito. Ao pé das aves, que baloiçam os corpos no centro do mundo, salta uma baleia com olhos enormes, “Parece um gigante, pai”, atira com espanto o juvenil sem barba, “É maior do que um autocarro”, o miúdo, com os olhos muito largos, abraça afincadamente o mistério, “Gostavas de…”, “Sim, pai. Seria fantástico”, o velho sorri, sacudindo o nariz achatado, “Vou alugar um barco. Venho já”, e desaparece, “A baleia!”, grita como as sereias, com lágrimas no canto da emoção.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

TEATRO

"KaMoNs - Erros meus, má fortuna, amor ardente"
25 de Junho, sábado, 21h30, casa das artes de vila nova de famalicão

Segundo Jorge de Sena: "Se pouco sabemos de Camões, biograficamente falando, tudo sabemos da sua persona poética, já que não muitos poetas em qualquer tempo transformaram a sua própria experiência e pensamento numa tal reveladora obra de arte como a poesia de Camões é."
Este espectáculo é um exercício imaginário a partir de “pistas” encontradas na obra e nos estudos biográficos de Camões.
Aqui não viajamos até 1524 (possível data do seu nascimento). Aquilo que veremos, não acontece em data específica. Acontece no passado, no presente e no futuro. Pois é aí que encontramos Camões. Na sua intemporalidade, no espaço-tempo por excelência dos grandes génios que os mantém sempre actuais.
Aqui baptizamo-lo de “KaMoNs”, poderia ser um nickname da internet, poderia ser um nome de código militar, poderia ser o próprio Camões.
E aqui veremos um homem que quis viver neste mundo, alegre e contente somente, contentando-se com pouco, mas a dura realidade mostra-lhe que não é bem assim.
Camões escreveu os seus poemas conforme viveu. Foi um poeta marcado por múltiplas experiências. Como todos nós. Mas da dureza que a realidade lhe apresentava, brotou uma obra singular que nos define enquanto cultura e enquanto parte da Humanidade

quinta-feira, 16 de junho de 2011

PACIÊNCIA


O mar abre-me as pálpebras e olha-me. Fico confuso, um pouco perturbado, mas o beijo do malandro na minha face faz-me sorrir, "Olá, amor. Dormiste bem?", ergo a preguiça para a verticalidade e bocejo como um leão, "Dormi perfeitamente. E tu?", "Estive toda a noite a ver-te, amor. Não preguei olho", "Tens que descansar", "Fica para outro dia", mas o barulho da persiana faz-me sobressaltar, "Ó meu, a almofada não é nenhuma mulher", esbofeteio o colchão e coloco o nariz furioso, "Não se acorda um santo desta forma", e fecho os olhos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

SORRISOS

Tenho os lábios com sorrisos imaculados. Porém, junto ao infinito, o sol não empurra as nuvens pardacentas. Talvez a tristeza lhe tenha inundado o rosto; talvez o seu coração não encontre o caminho do paraíso. Não sei, "Ó Manel, onde estão as asas?", "No corredor", pego nelas e encaixo-as no dorso. Respiro fundo e voo para o reino das trevas, com intuito de as aniquilar.

terça-feira, 14 de junho de 2011

AMANTES FELIZES


A noite evapora-se da camada do infinito. Para o seu lugar surge o fogo, que irradia luminosidade intensa para a bola mentirosa. A este gesto de camaleão, os transeuntes viram-lhes a ignorância e o desprezo, como se vincassem o silêncio dos inocentes, “És o meu amor. Faço tudo por ti”, e o casal coloca os lábios no paraíso, salivando longas ternuras. No fim do beijo, os corpos seguem veredas diferentes. Junto à pastelaria do Aureliano, o corpo da mulher agarra-se a um homem e beija-o, “És o meu amor. Faço tudo por ti”, “Esse cd já está riscado”, “Amo-te, acredita”, “Ó mulher, tu vais casar daqui a alguns meses! Não achas que…”, “Cala-te, tenho que aproveitar a ave que há em mim”, “E o…”, “Ele também faz o mesmo”, e beijam-se como amantes felizes.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

IDENTIDADE


Na cidade, as trevas penteiam a anarquia das ruas, como se os seus dedos escavassem memórias na montanha agreste. Junto a um vale, uma manada de loucos resmungam brutalidades, recortando o silêncio com desprezo. Mas a luz dos deuses, essa casta dos sonhos, incendeia a cratera do mar, onde a perfeição namora com os sorrisos dos senhores, “Amor é fogo que arde sem se ver…”, “Não te esqueças da ferida, Camões”, “É ferida que dói, e não se sente…”, e a língua sem traquejo fórmula a vontade do povo: a identidade. E a cidade atira-se às luzes.

‎123º ANIVERSÁRIO DE FERNANDO PESSOA


Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português.

É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões. O... crítico literário Harold Bloom considerou a sua obra um "legado da língua portuguesa ao mundo".

Por ter crescido na África do Sul, para onde foi aos seis anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa aprendeu a língua inglesa. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Fernando Pessoa dedicou-se também a traduções desse idioma.

Ao longo da vida trabalhou em várias firmas como correspondente comercial. Foi também empresário, editor, crítico literário, ativista político, tradutor, jornalista, inventor, publicitário e publicista, ao mesmo tempo que produzia a sua obra literária. Como poeta, desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterónimos, objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador da heteronímia, auto-denominou-se um "drama em gente".

Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática aos 47 anos, na cidade onde nasceu. Sua última frase foi escrita em Inglês: "I know not what tomorrow will bring… " ("Não sei o que o amanhã trará").

domingo, 12 de junho de 2011

SIMPLES

Descobri a noite. Estava no deserto dos nadas a conversar com o diabo, sob uma chuva manhosa.

sábado, 11 de junho de 2011

SIMPLES

Tenho fantasmas nos olhos. São chatos. Mas irei borrifá-los com àgua da torneira. bom dia ;)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A EXPLICAÇÃO DO SONHO


Com os olhos a mordiscar o cansaço, agarro na partícula do kline e colo-a na base. Aos poucos e poucos a união dos quase nadas formam uma moradia à escala das formigas, que os meus dedos mindinhos esmagam o aconchego do amanhã, “A legenda não define este espaço…”, “É uma garagem. Não vês a planta do carro?”, pergunto ao incauto, que é um dos ignorantes das nuvens, “Desculpa a pergunta. Quem não sabe é como quem não vê. Não é?”, agarro-me ao infinito e alargo o olhar, “Para os filósofos dos espaços, o fim não é o céu”, “Mas como eu sou da terra, as minhas perguntas são epidérmicas. Desculpa!”, “Não tens nada que pedir desculpa”, amarroto-lhe o ombro com familiaridade, “O autocarro do sonho já me deixou na paragem da terra. Agora posso explicar-te o projecto”, “Fixe. Chuta”, e as palavras saem-me da boca como se fossem tempestades.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

RAIVA VERMELHA


O sol e o azul celeste dançam uma valsa harmoniosa, enquanto a tarde mastiga os corpos dos transeuntes como se os chicoteasse. Ao fundo, a montanha espreita para o campo de futebol, onde se joga uma final, “Corre, corre, corre…Raio que te parta, meu, passa a bola”, “Tem calma, Zé das Canecas”, abraço-lhe o coiro suado, “Aqueles gajos, aqueles gajos…”, e coloca o rádio sobre o ouvido da esquerda, da mesma forma que abraça a Maria nas noites frias, “Temos que ser campeões, porra. Não admito perder contra os rivais!”, inesperadamente os rivais marcam um golo, “Grandes cabrões! Não pode ser, não pode ser…”, “Ó Canecas, ainda falta vinte minutos. Vais ver que eles ainda vão empatar”, “Não pode ser, não pode ser…”, e os olhos do bom homem vertem uma raiva vermelha.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O DIVÓRCIO ANIMAL


O prelúdio da morte passeia-se junto às nuvens, onde o algodão pardacento toca na crista da montanha. Junto à porta desproporcionada, um homem bojudo escarra como um tufão, “Muito vomitas, companheiro! Não sei o que se passa contigo!”, “Quando penso nas tuas palavras sem eloquência fico assim”, e sorri. O armário, um homem que convive com as trevas, ergue-se com vivacidade, enquanto a brisa lhe penteia a barba com metros, “As tuas palavras são severas”, “Trataste com desdém a minha cuspidela”, sem que nada fizesse prever, os pulsos baloiçam afirmações, “Grandes morcões, pontapeiem o diabo”, grito para os construtores de guerra, “Abracem os corpos com amizade e não amem o divórcio”, os olhos amigos descravam o ódio e beijam a excelência da amizade, “Desculpa”, e dizem em uníssono.

domingo, 5 de junho de 2011

O VENTO COM DUAS FACES


A noite tropeça no dia e enche a cidade de ignorâncias. Aqui e ali surgem pontinhos artificiais, que incendeiam as torres metálicas ou as lojas quase despidas de artigos. Nos pisos que encaixam sobre esses dorsos moribundos, vivem velhos fantasmas, que pedem esmola na vivacidade anárquica da periferia, onde os preços rondam as migalhas e onde as portas de alguns equipamentos públicos abriram arraiais.
No fim deste extracto de cidade surge-me ao rosto e ao rosto das fachadas com solidão uma Praça com desenho. No centro desta, a estátua de um patriota organiza-a cuidadosamente, como se organizasse uma superfície artificial, porque a essência deste espaço está engavetada numa bibliografia de um génio. Ao pé dela estão alguns bancos de pedra.
Com o corpo refastelado nessa eloquência, olho para a composição abandonada e penso, “O que era antes um jardim de cabeças a dialogar sobre tudo não é agora mais do que uma memória asquerosa a mugir os últimos espasmos, como se as praças e as ruas fossem pequenos infernos”, enquanto abano negativamente a cabeça. Mas largo de súbito a reminiscência, pois a noite está fria e o sono carrega-me nas pálpebras.
Levanto-me e desço a vereda, que está iluminada pelas luzes do céu. Pouco depois surge-me ao olhar um rectângulo conhecido. Paro o ímpeto junto dele e retiro do bolso do casaco uma estranha chave. E com ela a mexer-se por entre os meus dedos, coloco-a na fechadura e rodo-a. Quase no mesmo instante, a porta move-se ligeiramente. Sorrio e empurro-a com violência.
Depois de vários pestanejos, a noite adormece no incerto. Para o seu lugar surge a alvorada, que é empurrada pelos senhores dos galinheiros. Na mesma proporção, coloco os pés no empedrado e vou até ao café da esquina, onde fazem umas torradas deliciosas. Como-as como um guloso e desapareço da solidão, que apenas conhece alguns forasteiros que insistem em namorar os desígnios da decadência.
Sobre a Praça da República, outrora sala de visitas da cidade, os esqueletos com dores agasalham-se nas sombras das árvores, “E a massa humana empanturra a tristeza, caros amigos”, “É verdade, Manel. Os sinos do trabalho exigem a presença dos trabalhadores”, e agarram-se ao saber empírico como ninguém, navegando por mares pouco navegados.
Mas o princípio da noite volta a cravar as garras nas costas do dia. E por causa disso, a luz que ofuscou a cidade perde a intensidade da adolescência, como se a obrigasse a transformar-se lentamente num deserto sem cheiro, num rio sem peixes, “Adeus, caros concidadãos do silêncio. Tenho que pensar em razões sobre a Renovação Urbana e Memórias Históricas”, “Não te esqueças de nós, homem”, “Não me esquecerei de ninguém”, sorrio e despeço-me dos meninos com a pele engelhada.
Momentos depois, entro no meu conforto, que mais parece um refúgio de livros. Vou até à varanda, que fica a três pisos de altura do empedrado, e respiro o chilrear das bolas de penas. Ao longe, pregadas no horizonte, grandes torres iluminadas buscam o infinito. No meio delas, largas filas de máquinas com botões contagiam os nervos com desassossegos. Aqui, no centro das memórias, as luzes são meras obrigações sociais, pois não passam de simples desperdícios, pois não passam de simples bolas que enfeitam as fachadas ou o ar decadente (...)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sugestão


SEIS PASSEIOS NOS BOSQUES DA FICÇÃO - UMBERTO ECO - O que é substancialmente mágico na ficção é quando a
mesma se esbarra, transpassa a realidade... e além de tentar
representá-la, acaba sendo em si - a
realidade... O que é a
ficção? Será a obra de ficção, ficção? Ou será a obra de ficção uma
realidade ainda não vivida? Ou uma realidade - ainda que só tenha
acontecido no intrínseco do autor? Ou será uma realidade para o próprio
leitor, quando este se apropria da obra e passa a encontrar na ficção
elos com sua realidade individual? Existe obra de ficção? Ou toda
ficção é puramente a transcrição de uma realidade comum a todos os
humanos? Será toda ficção real? Há limites entre a ficção e a
realidade? Ou será a ficção realidade? Se a ficção for tão real
quanto acreditamos quando compenetrados na leitura de un livro... por
que não tentar viver nossa realidade como se esta fosse uma obra de
ficção? E se a realidade também nos parece tão fictícia as vezes... por
que não viver a ficção dos livros em nossa realidade? Qual leitor
é que não sente em si quando Franz Kafka, começa a descrever os
tormentos pelo qual o seu personagem de A Metamorfose passa ao se
transformar num inseto? Esse é o momento encantado onde ficção e
realidade se encontram... como não sentir as inquietações do
homem-inseto? Daí, o questionamento: realidade e ficção, serão
necessariamente dois lados de uma mesma moeda? Impossível uma sem a
outra? Que relação de interdependência há entre ambas? A história
de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo... que leitor contesta as
aparentes discrepâncias com a realidade? Lobo mau, menina sozinha... a
mãe que sabe que a floresta é perigosa e permite que a filha vá por
entre ela mesmo assim... quando lemos a história e não questionamos
esses detalhes... estamos ou não deixando que a ficção se integre a
nossa realidade? De que maneira a ficção se intromete em nossa vida?
Seja na literatura, seja no cinema? Como lidamos com essas intrusões?
Por que temos essa necessidade quase que inata de ler ficção? De
apreender o que nos escapa ao real? Por que fantasiamos? Será mais um
caminho da busca pelo sentido da existência?

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Frase

"Que seja assim o arquitecto - homem entre os homens - organizador do espaço - criador de felicidade", Fernando Távora